São Paulo, segunda-feira, 05 de setembro de 2011

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Tendências mundiais

VALI NASR OPINIÃO

Os riscos por trás da Primavera Árabe

Cismas sectários ameaçam sonhos democráticos

Xiitas e sunitas competem pelo poder na região

A Primavera Árabe é um capítulo de esperança na política do Oriente Médio, mas a história da região aponta para possíveis consequências mais sombrias. Não existem exemplos recentes de partilhas extensas do poder ou transições democráticas pacíficas no mundo árabe. Quando ditaduras começam a rachar, é mais provável que democracias nascentes sejam saudadas por violência e paralisia. Em seguida emergem as divisões sectárias.
A Síria se encontra hoje à beira de uma reviravolta desse tipo. A brutalidade do regime de Bashar Assad está abrindo uma fissura entre a minoria alauíta, que governa o país, e a população, de maioria sunita. Depois do massacre cometido por Assad na cidade de maioria sunita de Hama em 31 de julho, a Irmandade Muçulmana, um grupo sunita, acusou o regime de travar "uma guerra de limpeza étnica".
Extremistas sunitas vêm atacando famílias e empreendimentos alauítas. O potencial de um confronto maior entre alauítas e sunitas é evidente, e é provável que ele não se limite à Síria. Em lugar disso, haveria o risco de que desencadeasse uma dinâmica regional que poderia tomar conta da narrativa esperançosa da própria Primavera Árabe.
Em todo o Oriente Médio existe uma forte subcorrente de tensão sectária fervilhante entre sunitas e xiitas, dos quais os alauítas formam um subgrupo. Xiitas e sunitas vivem lado a lado em um longo arco que se estende do Líbano ao Paquistão, e as duas principais potências da região, o xiita Irã e a sunita Arábia Saudita, disputam o poder.
O problema tem suas origens no período colonial, quando administradores europeus manipularam a diversidade religiosa e étnica em sua própria vantagem, conferindo a minorias representações maiores nos governos e nas forças de segurança.
A guerra no Iraque começou a desencadear o potencial destrutivo da luta pelo poder entre esses dois grupos, mas a questão não se resolveu ali. A Primavera Árabe permitiu que ela voltasse à tona, pelo fato de ter enfraquecido Estados que durante anos reprimiram as divisões sectárias e suprimiram brutalmente as queixas populares. Hoje xiitas estão clamando por direitos maiores no Líbano, Bahrein e Arábia Saudita, enquanto sunitas estão insatisfeitos no Iraque e na Síria.
Desta vez, é provável que cada lado seja apoiado por uma potência regional nervosa, ansiosa para proteger seus interesses. A monarquia saudita, que se vê como guardiã do islã sunita e vê a teocracia xiita iraniana como sua inimiga maior, sofreu um revés quando o controle do Iraque passou dos sunitas para as mãos dos xiitas. Mas isso só fez aumentar sua determinação de reverter a ascensão da influência iraniana.
Não chegou a surpreender que a Arábia Saudita tenha sido o primeiro Estado árabe a retirar seu embaixador de Damasco, em agosto. E, desde 2005, quando o xiita Hizbollah foi implicado no assassinato de Rafik Hariri, primeiro-ministro sunita de grande popularidade e que tinha vínculos estreitos com os sauditas, uma grande brecha passou a dividir as comunidades sunita e xiita do Líbano e suscitou a fúria saudita contra o Hizbollah.
As autoridades em Riad veem os fatos recentes no Líbano como uma vitória iraniana e como a concretização do "crescente xiita" contra o qual o rei Abdullah da Jordânia avisou certa vez.
Em março, receando a difusão da Primavera Árabe, a Arábia Saudita decidiu opor resistência no Bahrein, onde uma maioria xiita teria sido empoderada se os protestos pró-democracia tivessem conseguido expulsar a monarquia sunita do poder. Os sauditas pediram ajuda das monarquias do Golfo Pérsico para apoiar a monarquia sunita do Bahrein, reprimindo os protestos com brutalidade -e enviando ao Irã um aviso de que estavam "preparados para ir à guerra contra o Irã e até mesmo contra o Iraque em defesa do Bahrein".
Os sauditas têm razão em se preocupar com as consequências de disputas sectárias no Líbano e Bahrein, mas, na Síria, é o Irã que pode perder. As duas partes compreendem que o resultado final decidirá o equilíbrio de poder na região. Cada luta nesta rivalidade tem importância, e cada choque traz riscos para a estabilidade regional.
Os fatos na Síria são especialmente importantes, porque os sunitas de outros países vêem o governo alauíta como elemento central na aliança xiita entre o Irã e o Hizbollah. O choque entre alauítas e sunitas na Síria poderia rapidamente atrair a interferência dos dois atores principais da região e desencadear um conflito sectário regional mais amplo entre seus aliados locais, desde o Líbano até o Iraque, o Golfo Pérsico e mais longe.
O espectro de choques sangrentos prolongados, assassinatos, atentados a bomba, limpeza sectária e crises de refugiados de Beirute a Manama, provocando instabilidade e alimentando a rivalidade regional, pode pôr fim à Primavera Árabe carregada de esperança. Vozes radicais de ambos os lados ganharam força. Isso já está acontecendo no Bahrein, Líbano, Síria e Iraque.
Nada disso vai beneficiar a democracia ou os interesses ocidentais. Mas procurar desativar as tensões sectárias em todo lugar onde elas ocorrem manteria a estabilidade regional. Mesmo que Washington tenha pouca influência na Síria, deveria colaborar com seus aliados que a têm: Turquia e Arábia Saudita.
Fora da Síria, os dois países mais em risco são o Bahrein e o Líbano, e aqui os EUA podem exercer impacto. Os Estados Unidos deveriam exortar a monarquia do Bahrein a pôr fim à repressão e a uma partilha do poder. Washington tem laços militares fortes com o Bahrein.
No Líbano, os EUA deveriam defender uma redistribuição do poder entre xiitas, sunitas e cristãos. O último censo libanês de 1932 ainda determina a estrutura de poder do país em favor de sunitas e cristãos. A partilha de poder em Beirute é tão importante para a estabilidade no Líbano quanto é desarmar o Hizbollah.
O Oriente Médio está passando por transformações históricas. Washington pode ter a esperança de um futuro pacífico e democrático, mas deveria ficar em guarda, atento a conflitos sectários que podem custar caro para a região e para o mundo.


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