São Paulo, segunda-feira, 06 de dezembro de 2010

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Sudanês está de volta a sua aldeia

Por JEFFREY GETTLEMAN

NYAL, Sudão - Voltando para casa após 22 anos de ausência, Joseph Gatyoung Khan fez uma promessa, pronunciada no banco traseiro da Land Cruiser em que sacolejava: não vou chorar.
Ele não colocava os pés na sua aldeia desde 1988, quando partiu, aos oito anos, em uma odisseia descalça através de uma das piores guerras civis africanas. Sua história se repetiria milhares de vezes, e toda uma geração de meninos sudaneses, espalhados pelo conflito, passaria a ser conhecida como "os meninos perdidos". Enviados por suas famílias no auge da violência, eles acabavam percorrendo milhares de quilômetros por pântanos, desertos e territórios hostis, às vezes forçados a virarem soldados.
Milhares acabaram realocados nos EUA. Nos últimos sete anos, Khan trabalhou no turno da madrugada em um cassino, virou aluno destacado na Universidade de Iowa e comprou um Isuzu Rodeo branco. Mas agora ele está voltando para casa.
Um referendo no dia 9 de janeiro pode tornar o sul do Sudão independente do norte. Essa votação será o coroamento de uma luta de 50 anos, em que mais de 2 milhões de pessoas morreram, envolvendo o sul do Sudão, cristão e animista, contra os governantes árabes do norte. Há expectativa de que o "sim" à independência vença.
Muitos "meninos perdidos" estão voltando, para votar.
Mas a alegria do regresso é matizada pela incerteza e pelo medo. Será que o norte realmente permitirá a separação do sul? "Estou com medo", disse Khan.
A jornada dele começou em Juba, principal cidade da região, no começo de novembro. Juba é uma cidade em mutação. Desde que o tratado de paz com o norte foi assinado, há cinco anos, o sul do Sudão se prepara para a autonomia. Há novas avenidas, novos diplomatas, trabalhadores humanitários, comerciantes, gente prospectando petróleo.
Khan, então, foi de avião até Bentiu, cidade mais próxima à sua aldeia. É lá que está o petróleo do Sudão. Parte do problema de dividir o Sudão é que 75% do petróleo do país é extraído no sul, mas os dutos correm para o norte, o que significa que o sul continuará dependente do norte.
Em Bentiu, Khan encontrou Stephen Gatloy Tunguar, outro "menino perdido", que ele não via fazia anos. Conversaram sobre todos os amigos que morreram na jornada da infância até os campos de refugiados no Quênia. "A gente passava por cima deles e continuava", contou Khan.
De Bentiu, faltam só 240 km. Mas é muito difícil chegar à aldeia. Khan e seu meio-irmão, Gatluak, passaram dois dias procurando um carro para alugar. O empreendedorismo não é um dos pontos fortes do sul do Sudão. Funcionários da ONU apontam uma "falta de capacidade" e dizem que ela pode paralisar o futuro país.
Finalmente, Khan chegou a um lugar verdejante que ele reconheceu. "Meu Deus, eu costumava subir nessa mangueira", disse.
Ele desceu do veículo deslumbrado e, amparado ao meio-irmão, começou a percorrer as trilhas de areia da sua juventude, mas, desta vez, calçando um par de tênis Air Jordan, de US$ 135. Estrada acima, uma figura alta e magra veio correndo na sua direção. "Me diz se não é o meu filho! Me diz se não é o meu filho!", gritava a mulher.
A mãe se atirou sobre ele. Ele fechou os olhos e a abraçou. Seu pai chegaria no dia seguinte -estava a um dia de canoa de lá, pastoreando o rebanho junto a um rio.
Nyal é um lugar que parece difícil de ser deixado. É como se a paz e a comunhão emanassem das choupanas e dessa gente excepcionalmente alta. A guerra civil quase não passou por aqui, e, como explicou Khan, alguns dos "meninos perdidos", como ele, inicialmente não estavam fugindo do conflito. Foram mandados na sua direção, pelos rebeldes. "Éramos crianças soldados", disse.
Nessa primeira noite, tudo correu bem. Khan manteve-se calmo. Não contou a ninguém que pretendia voltar para a faculdade de direito, nos EUA, se arrumasse dinheiro.
Mas a manhã seguinte foi diferente. Ele estava sentado numa cadeira de plástico, dezenas de mulheres com vestidos rasgados cantavam e dançavam ao seu redor, criancinhas com narizes escorrendo e barrigas inchadas apertavam a mão dele. "Elas estavam mais felizes do que eu", afirmou. "Elas não têm escolas, não têm bons hospitais, há muitos mosquitos por aqui, mas ainda assim, lá no fundo, elas estavam muito felizes."
E isso o levou a repensar seus planos. "Meu lugar é aqui", disse ele. "O resto do mundo não precisa de mim, não, mas esta gente precisa de mim. Eu tenho uma razão para ainda estar vivo."
Mas, nessa hora, ele não disse nada. Só chorou.


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