São Paulo, segunda-feira, 06 de dezembro de 2010

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INTELIGÊNCIA/HELENA MULKERNS

O outro lado dos irlandeses

Crise faz um país inteiro encarar a realidade

Dublin

Os irlandeses do século 21 podem levar algum tempo para se levantar da poltrona, mas, quando o fazem, é com determinação e drama.
Em um dos dias mais frios já registrados num mês de novembro na República da Irlanda, uma enorme multidão cruzou o rio Liffey na direção do prédio do Correio, levando cartazes e exigindo a queda do governo.
O simbolismo do destino do grupo era inequívoco. Foi nesse prédio, em 1916, que revolucionários lutando para libertar a Irlanda do domínio colonial leram a Proclamação da Independência Irlandesa original.
Desta vez, a nação estava protestando contra um resgate econômico internacional, visto por muitos dos seus habitantes como um golpe à sua soberania.
Uma amiga irlandesa que trabalha atualmente numa entidade humanitária na Etiópia disse ter compreendido o interesse mundial pela crise irlandesa quando um camponês da Somalilândia perguntou casualmente a ela: "Como vai o resgate de vocês?".
A imprensa internacional, que nas últimas semanas aparece em cada esquina de Dublin, observou naquele sábado um lado diferente dos irlandeses -o briguento.
Uma multidão tão apaixonada, diversa e grande (oficialmente estimada em 50 mil pessoas, mas avaliada pela imprensa em até 100 mil) não era vista nas ruas de Dublin desde as passeatas por direitos humanos no começo da década de 1970.
Não foi fácil levar os irlandeses em massa para as ruas. No começo, ríamos das piadas econômicas ("qual é a diferença entre Irlanda e Islândia? Duas letras e seis meses").
Vimos os gregos queimarem carros e destruírem lojas nas ruas de Atenas. Nunca achamos realmente que isso poderia nos acontecer.
A profundidade do atual trauma econômico é tal que o irlandês comum acha difícil aceitá-lo. A dificuldade é ainda maior em compreendê-lo.
Durante os anos do "Tigre Celta", quando tudo que a Irlanda tocava virava ouro, seus cidadãos mergulharam numa orgia consumista de luxo e glamour, e nada parecia que poderia dar errado no país. Hoje, as muralhas do sucesso desmoronaram, gerando uma espetacular queda em desgraça.
Talvez seja a altura dessa queda -e o inegável elemento de cobiça- que sobrepujou os bancos, as empresas, os empreendedores imobiliários e os cidadãos durante o "boom" que, até agora, mantinha os irlandeses num estado de negação da realidade.
Vozes de protesto pequenas, mas significativas, já vinham sendo ouvidas. Em outubro de 2008, idosos -alguns com andadores- se concentraram em frente a prédios públicos com o objetivo de protestar contra o corte de benefícios médicos.
Em setembro deste ano, a população elevou a herói popular um tal de Joe McNamara, construtor falido que atirou o seu caminhão-betoneira contra as portas dos mesmos edifícios públicos. Ele foi visto como a voz do "trabalhador" contra os poderosos.
Quando a verdadeira dimensão da crise foi compreendida, com seus cortes de gastos públicos e seu buraco negro de empregos perdidos e investimentos com rendimentos negativos, os irlandeses se sentiram inundados de desespero e confusão.
Nas últimas semanas, isso se metamorfoseou em emoções que oscilam entre o terror e a fúria.
A ira vai além do que as pessoas veem como um vergonhoso pedido de resgate.
A inevitabilidade das medidas draconianas de austeridade, necessárias para que os empréstimos sejam pagos, é encarada como uma traição do governo irlandês para salvar acionistas dos bancos e empreendedores imobiliários bem de vida, já que causa prejuízo ao povo do país.
A pá de cal veio no final de novembro, quando funcionários do Banco Central Europeu e do Fundo Monetário Internacional chegaram a Dublin e, como disse o comentarista de uma rádio, "não vieram para fazer suas compras de Natal...".
Embora não haja muita gente dando risada hoje em dia na Irlanda, as pessoas, pelo menos, tentam se mobilizar pela mudança. Ao passarem sobre o gelo que tingia de branco o calçamento das ruas de Dublin durante seu protesto, era como se a psique coletiva irlandesa houvesse encontrado a sua voz e tivesse começado a se fazer ouvir.
Resta ver, no entanto, até que volume será preciso gritar para que o governo -ou a zona do euro como um todo- escute que as pessoas estão cansadas daqueles que as levaram a este atoleiro, e que elas esperam um tratamento mais justo dos seus hóspedes natalinos.


Helena Mulkerns, que vive na Irlanda, é escritora e jornalista. Envie seus comentários para o e-mail
intelligence@nytimes.com.



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