São Paulo, segunda-feira, 08 de fevereiro de 2010

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Ensaio - John Tierney

Distorções não vêm só do dinheiro corporativo


O erro de procurar conflitos em vez de promover o debate


Vejo-me na insólita posição de defender Al Gore e outro Prêmio Nobel, Rajendra K. Pachauri.
Quando receberam o prêmio, em 2007, eles foram saudados por seu esforço abnegado para proteger o planeta da cobiça das empresas de combustível fóssil. Desde então, porém, sua abnegação tem sido questionada. Os jornalistas começaram examinando o dinheiro que vai para empresas e ONGs ligadas a Gore e agora voltaram sua atenção para Pachauri, presidente do Painel Intergovernamental da ONU para a Mudança Climática (IPCC na sigla em inglês).
O IPCC, que deveria ser o padrão-ouro da ciência climática revisada por pares, alertou em 2007 para a "altíssima" probabilidade de que o aquecimento global poderia fazer as geleiras do Himalaia sumirem até 2035. Quando posteriormente o governo indiano publicou um documento concluindo que não havia evidências sólidas a respeito disso, Pachauri inicialmente minimizou o que chamou de "ciência vodu", que estaria abaixo dos padrões do IPCC.
Mas soube-se depois que a projeção do IPCC se baseava apenas em comentários especulativos feitos uma década antes numa entrevista por Syed Hasnain, glaciologista que hoje trabalha em uma entidade indiana de pesquisas dirigida por Pachauri.
Recentemente, o IPCC se desculpou pelo erro, por si só já bastante constrangedor para Pachauri. Mas ele também teve de enfrentar acusações de conflito de interesses. O londrino "The Telegraph" noticiou que ele possui "uma carteira mundial de interesses empresariais", o que inclui relações com empresas de comércio de carbono e com seu grupo de pesquisas, o Instituto de Energia e Recursos.
Pachauri respondeu com uma defesa da sua ética, dizendo não ter lucrado pessoalmente e ter destinado todos os rendimentos à sua instituição não lucrativa. Ele denunciou as táticas dos seus críticos: "[Se] você não consegue atacar a ciência, ataque o presidente do IPCC".
Obviamente pode-se atacar parte da ciência contida no relatório do IPCC, sem falar de outros alertas sombrios nos discursos de Pachauri. Mas concordo com sua ideia básica: acusações de conflito de interesse se tornaram a estratégia mais simples para evitar um debate substancial.
A crescente obsessão por seguir o dinheiro muitas vezes leva apenas a ataques pessoais vulgares.
Evidentemente, o dinheiro interessa a todos; quanto mais temores Pachauri e Gore aguçam a respeito da mudança climática, mais dinheiro fica passível de fluir para eles e para as empresas e instituições às quais são afiliados. Diante de todas as acusações que eles fizeram sobre os motivos financeiros dos "negacionistas" da mudança climática, há certa justiça em que suas finanças sejam investigadas.
Mas não duvido de que Gore e Pachauri estariam pregando contra os combustíveis fósseis mesmo se não houvesse dinheiro para eles nisso, assim como não duvido que os céticos estariam contra eles gratuitamente.
Por que jornalistas e conselhos de ética tão prontamente supõem que o dinheiro, particularmente o dinheiro corporativo, é o primeiro fator a examinar na hora de avaliar o trabalho de alguém?
Uma razão é a preguiça. É mais simples notar uma conexão corporativa do que analisar todos os outros fatores que podem distorcer o trabalho dos pesquisadores: sua origem e ideologia; sua ânsia por publicidade, prestígio e poder; a política da sua profissão; as pautas de órgãos públicos, fundações e comitês que financiam parcela tão grande da atividade científica.
Outra razão é um esnobismo análogo ao desdém da velha aristocracia britânica pelas pessoas "de ofício". Muitos cientistas, editores de publicações e jornalistas se veem como uma espécie de classe sacerdotal, imaculada pelo comércio, mesmo quando trabalham para instituições que recolhem regularmente dinheiro de empresas, na forma de bolsas de pesquisas ou publicidade.
Em vez de estigmatizar certas bolsas de pesquisa, talvez devêssemos considerar o quadro mais amplo. Se os cientistas listassem todos os seus doadores públicos e privados em seus sites, os jornalistas poderiam simplesmente dar o link dessas páginas e permitir que os leitores decidam quais doadores são potencialmente corruptores. Em vez de seguir regras rígidas para noticiar "conflitos", os jornalistas poderiam usar seu julgamento e noticiar apenas os que lhes parecessem relevantes.
Às vezes, não dá para entender um debate ou polêmica sem saber quem está pagando quem. Mas, em geral, fico com Pachauri: siga a ciência, não o dinheiro.


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