São Paulo, segunda-feira, 08 de agosto de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

O poder corrosivo do medo

Paris
O medo talvez seja o instrumento político mais poderoso. Ele faz o sangue pulsar. Ele une a tribo contra o inimigo designado. É um vírus que pode assumir a forma de uma praga. Eu o vi em ação em 1992 em aldeias bósnias mistas, onde a harmonia prevalecia antes que os líderes nacionalistas sérvios convocassem o espectro histórico do "turco sedento de sangue" para atiçar o ódio contra os muçulmanos locais.
A outra face do medo é a violência. Os personagens mudam, mas não as técnicas. O inimigo imaginário é um predador que esconde seu motivo, uma ameaça perversa. Para quem exatamente? Para as "comunidades imaginárias" ("Imagined Communities"), título do livro de Benedict Anderson sobre como surge o nacionalismo: a nação germânica ariana, de Hitler, a Grande Sérvia, de Slobodan Milosevic, ou a Noruega branca e cristã, de Anders Breivik, o acusado pela chacina, que veste Lacoste.
Hitler destacou os judeus no exato momento em que a emancipação havia forjado uma grande presença judia nas empresas alemãs, na medicina, na lei e em outros campos. É interessante que a escolha dos muçulmanos por partidos de direita da Dinamarca à França ocorra em um momento em que, entre toda a conversa sobre os fracassos do "multiculturalismo", existem muitos profissionais europeus muçulmanos saindo-se bem.
Nos EUA, uma das "comunidades imaginárias" mais estranhas é a chamada Sociedade dos Americanos pela Existência Nacional, criação de um advogado judeu hassídico chamado David Yerushalmi. Ele fez dela seu negócio, juntamente com vários institutos conservadores de políticas públicas e figuras republicanas, para instigar um frenesi americano sobre a possível perda da nação para a lei islâmica, a sharia. Minha colega Andrea Elliott escreveu um retrato brilhante de como essa ameaça inventada foi concebida, propagada e financiada para promover o sentimento antimuçulmano.
A lei sharia está tão prestes a dominar os EUA (ou a Europa) quanto Bart Simpson. Mas Michelle Bachmann, a candidata presidencial republicana, adverte sobre o "controle totalitário", e Sarah Palin diz que a sharia poderá "ser a derrocada da América". O cálculo político considera o medo pós-11 de Setembro em um momento em que há um presidente negro cujo segundo nome é Hussein.
Quando Oklahoma aprovou majoritariamente em novembro passado uma emenda constitucional que proíbe a sharia, fiquei tão surpreso que decidi visitar o Estado onde os muçulmanos representam menos de 1% da população.
O movimento antisharia local é um estudo de caso do cultivo de uma ameaça artificial com fins políticos. Uma organização chamada Act for America (aja pela América), que se opõe "aos valores autoritários do islã radical", ajudou a financiar a iniciativa. Um clima feio se disseminou. Os muçulmanos sentiram medo.
Certa sexta-feira, encontrei várias centenas deles reunidos para as orações em uma mesquita em Oklahoma City. Seu líder religioso, o imame Imad Enchassi, lhes dizia: "Muitos de vocês podem ter sido assediados ou ameaçados no trabalho. Não espero que vocês amem aqueles que os odeiam, mas entendam uma coisa: muitos de vocês vieram para a América de países opressivos. Aqui, podemos processar o governo. Nos países de onde vocês vêm, caso processem o governo, desaparecerão".
Foi o que fez um muçulmano de Oklahoma, Muneer Awad, 27: ele processou o Estado de Oklahoma por causa da "Emenda Salve nosso Estado". Um juiz federal o bloqueou. Awad é um advogado palestino-americano; seus pais vieram da Cisjordânia.
O imame Enchassi tinha convidado o chefe local do FBI, o agente especial James Finch, para falar para sua congregação. Enquanto ele colocava o microfone em Finch, brincou: "Isso é algo que você ainda não viu -um imame grampeando o FBI!"
Finch, que é negro, levantou-se diante dos muçulmanos reunidos e declarou: "Somos agressivos no combate às violações dos direitos civis, aos crimes de ódio, incluindo a discriminação religiosa e vandalismo ou danos a qualquer propriedade religiosa. Todas as pessoas nos EUA têm a liberdade de praticar suas religiões sem medo de atos violentos".
Houve um murmúrio de aprovação. Enquanto eu assistia a essas cenas -um advogado afro-americano falando para muçulmanos americanos sobre seus direitos civis e como o FBI e o ministro da Justiça os defendem-, só pude pensar na hesitante, mas enorme jornada percorrida pelos EUA desde seu "pecado original" da escravidão até a eleição antes inimaginável de um presidente afro-americano.
Fiquei comovido por essa cena e a considerei uma imagem essencial de uma nação que nunca está imóvel, nunca se fixa, sempre falha, no entanto consegue se corrigir. Ainda acredito que isso é verdade, mesmo enquanto o medo espreita a terra, instigado por ideologias selvagens inimigas do ideal americano e do futuro da nação.


Texto Anterior: Itália sob risco de quebrar
Próximo Texto: Análise do noticiário: 'Terremoto militar' remodela a Turquia
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.