São Paulo, segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

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Arte & Estilo

Romances e peças repercutem caso Madoff


O financista está sendo comparado a vigaristas literários do passado

Por PATRICIA COHEN

"Você deve compreender que ganhar dinheiro é uma coisa, religião é outra, e vida familiar, uma terceira coisa", diz o sr. Voysey em tom pragmático a seu filho Edward, que está horrorizado ao descobrir que seu pai vem operando um esquema de pirâmide há anos com o dinheiro de seus clientes.
Voysey -o personagem afavelmente corrupto da peça de 1905 "The Voysey Inheritance", de Harley Granville-Barker- é um dos antecessores literários de Bernard Madoff, e sua visão de mundo pode sugerir como Madoff, filantropo, pilar do mundo financeiro e da vida judaica, envolveu familiares e amigos no que as autoridades estão descrevendo como esquema fraudulento de pirâmide de US$ 50 bilhões.
As acusações feitas a Madoff podem soar tão improváveis e exageradas que apenas uma imaginação literária poderia ter criado alguém como ele. De fato, enquanto empresários, psicólogos, teólogos e promotores ainda não conseguiram explicar as emoções e motivações humanas por trás do empreendimento de Madoff, a literatura e a dramaturgia já propuseram muitos modelos de seu tipo de comportamento.
"É quase ‘ipsis litteris’ a história de ‘The Voysey Inheritance’, escrito cem anos antes", comentou Neil Pepe, diretor artístico do Atlantic Theatre, que encenou a peça em 2006. "É sobre a natureza dos negócios, se estão dobrando as regras ou as estão obedecendo."
David Mamet, que adaptou "Voysey" para o Atlantic, explicou ao "New York Times", na época, o que o atraiu inicialmente para a peça: "Como funciona a sociedade? O que é o dinheiro? É possível dizer que o dinheiro é algo sem sentido -ele não existe realmente, então tudo, no fundo, está relacionado à confiança. Isso significa também que tudo está relacionado ao crime".
Nas palavras de Voysey, a segurança de seus clientes está não em folhas de papel, mas em "minha habilidade financeira". Para o personagem, observou Pepe, práticas desse tipo "são uma forma de comportamento aceita". É por isso que ele se impacienta tanto com Edward. "Por que é tão difícil para um homem enxergar além das palavras exatas da lei?", diz Voysey. "Precisamos aceitar o mundo tal como o encontramos, querido."
É claramente esse o mundo que Anthony Trollope retrata em seu romance "The Way We Live Now", de 1875. Em sua autobiografia, Trollope escreveu que esse romance satírico foi inspirado pela corrupção que corroía a sociedade britânica, "uma desonestidade magnífica em suas proporções e que vem ascendendo a lugares altos".
Seu financista de moral dúbia, Augustus Melmotte, está no centro de uma fraude enorme, vendendo participações numa ferrovia que não existe. Ele é visto como um gênio do setor financeiro, "o próprio umbigo do empreendimento comercial do mundo", e sua ruína "provocaria o estouro de metade de Londres". Muitos dos atributos de Melmotte podem ser encontrados em alguns dos salafrários da vida real que arrancaram dinheiro de investidores britânicos crédulos naquela época.
Comparando Melmotte a Madoff, Catharine Stimpson, reitora da Escola de Artes e Ciências da Universidade de Nova York, comentou: "Há a mesma sede de dinheiro. Ele é muito inteligente, não tem escrúpulo algum em enganar a todos e é socialmente ambicioso".
John Guare, autor de "Six Degrees of Separation" (Seis Graus de Separação) e "The House of Blue Leaves" (A Casa de Folhas Azuis), também pensou primeiramente em Melmotte quando perguntado sobre os paralelos literários com Madoff. Mesmo quando o escândalo está vindo à tona, observou, Melmotte conquista uma cadeira no Parlamento (no fim, ele se suicida).
"Falta um gene moral" a pessoas como Melmotte, disse Guare.
Talvez outra maneira de encontrar sentido no escândalo Madoff é analisar a credulidade da imensa rede de pessoas seduzidas por retornos que são bons demais para serem verdadeiros.
Depois de tomar conhecimento do escândalo, o artista israelense Ilan Averbuch recordou uma velha coletânea de contos folclóricos judaicos sobre o mítico povo de Chelm, uma cidade povoada por almas supostamente sábias, mas na realidade tolas. Em uma das histórias, os moradores da cidade decidem iluminá-la nas noites escuras, capturando a lua cheia, que veem refletida num grande barril de água. Eles fecham a boca do barril para que a lua não escape. Numa noite sem luar, eles abrem o barril. A lua não está lá.
"Vejam só isso", eles gritam. "Um ladrão a roubou."


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