São Paulo, segunda-feira, 12 de julho de 2010

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ENSAIO

SAM TANENHAUS

Criminosas são pouco retratadas na arte

Quando Ezra Pound declarou, em 1934, que "os artistas são a antena da raça", e Marshall McLuhan, 30 anos mais tarde, os descreveu como pessoas "de atenção integral", ambos estavam atualizando a crença antiga de que obras da imaginação podem exigir não só talento para a criatividade, mas para a sintonização -para captar sinais que já estão no ar.
De quando em quando, porém, uma brecha é exposta. Fatos acontecem, e a arte não oferece explicação. Os poderes da imaginação e da sintonização falham. Considere-se o caso de Amy Bishop, uma neurocientista acusada de atirar contra seis colegas na Universidade do Alabama, matando três deles. Explosões de violência desse tipo já se tornaram familiares. Mas, com raras exceções, seus autores são homens.
Amy Bishop mudou esse padrão. Quando descarregou sua arma de 9mm, no início deste ano, ela subverteu premissas, ou ilusões, de longa data sobre mulheres e violência -especialmente quando veio à tona um retrato mais completo de seu passado.
Boa parte dele indica um histórico de episódios violentos anteriores, incluindo a morte a tiros de seu irmão, em 1986, pela qual ela foi criminalmente acusada no mês passado, e seu papel suspeito no envio por correio de uma bomba improvisada a um membro do corpo docente de Harvard em 1994.
Não é novidade que os chamados atos sem sentido frequentemente obedecem a uma lógica interna. É isso o que faz da violência criminal um tópico tão interessante para artistas e pensadores. A literatura ocidental, de Shakespeare a Dostoiévski, está repleta de homens patologicamente violentos.
Norman Mailer e Truman Capote escreveram obras-primas de não ficção sobre eles. Esses personagens dominam os romances de Don DeLillo e Robert Stone, sem falar em filmes de Francis Ford Coppola e Martin Scorsese.
Mas a paisagem da violência feminina não provocada, mas premeditada, permanece estranhamente inexplorada. As mulheres que matam recebem "status de 'caso excepcional' que deriva de alguma circunstância fora do comum: a mulher espancada que mata seu marido abusivo, a mãe psicótica no período do puerpério que mata seu filho recém-nascido", observou a professora de criminologia Candice Skrapec no ensaio "The Female Serial Killer".
Skrapec escreveu num momento em que Hollywood parecia preocupada com mulheres que cometem crimes -como em "The Burning Bed" (1984), filme em que uma mulher espancada ateia fogo ao marido enquanto ele dorme, e "Thelma & Louise" (1991), em que duas mulheres partem em uma viagem como foras-da-lei após uma delas ser ameaçada de estupro.
Os dois filmes são parábolas de empoderamento, ancoradas na ideologia feminista, que livram suas protagonistas da culpa por seus atos. Suas heroínas começam como vítimas e são impelidas a cometer crimes pelas injustiças que lhes são feitas.
Os verdadeiros agressores são os homens que as maltratam e objetificam. É o caso, também, de "Monster - Desejo Assassino" (2003), em que Charlize Theron reencenou a história real da prostituta que, depois de anos sofrendo abusos sexuais, começou a assassinar seus clientes.
Há uma ou duas décadas, isso fazia sentido. O submundo dos abusos domésticos e da violência sexual estava vindo à tona. E os acordos sociais passavam por uma revisão abrupta. A mulher que a duras penas alcançava o sucesso no trabalho podia, como a perseguidora vivida por Glenn Close em "Atração Fatal" (1987), ver-se atormentada pela visão da família aparentemente perfeita do homem casado que era seu amante.
Muita coisa mudou desde então, mas o tópico das mulheres e da violência permanece mais ou menos parado no tempo. Apesar de sua singularidade, Amy Bishop é indicativa da evolução do status das mulheres nos EUA do século 21. O número de neurobiólogas pode ainda ser pequeno, mas as garotas com frequência superam os meninos em sala de aula.
Hoje as mulheres compõem a maioria dos estudantes de graduação em muitas faculdades de prestígio. E a disputa em torno de sua estabilidade no cargo de professora da universidade, que teria acendido o pavio curto de Bishop, reflete as ansiedades de muitas outras mulheres que hoje superam os homens em número na força de trabalho e cujo esforço tornou-se o principal ou único ganha-pão de suas famílias.
Talvez as reflexões mais úteis sobre o caso de Bishop venham da arte popular -de filmes como "Kill Bill", ou até mesmo do seriado "Lost", em que a noção hipotética de empoderamento dá lugar ao exercício do poder concreto.
"Tudo gira em torno do poder", afirmava Patricia Cornwell, cuja série "Scarpetta" é repleta de detalhes forenses. "Quanto mais as mulheres se apropriam do poder, mais seu comportamento imita o de outras pessoas poderosas."


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