São Paulo, segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

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INTELIGÊNCIA

ROGER COHEN

O longo caminho de volta

CAIRO
Escrevo em um apartamento no nono andar, conhecido informalmente como "A Casa da Revolução", que dá para a praça Tahrir, o centro tumultuado do levante popular do Egito e do mundo árabe. Lá embaixo, vejo desde minha sacada uma multidão enorme reunida em volta de uma cidade de barracas na qual se abrigam alguns dos muitos manifestantes que estão aqui há uma semana ou mais. A emoção flutua na praça, tão imprevisível quanto as brisas que sopram do vizinho Nilo, períodos de exultação seguidos por interlúdios inativos de incerteza. Em 7 de fevereiro, a iniciativa era dos incontáveis egípcios que se recusam a aceitar menos que o fim dos 30 anos de governo com punho de ferro de Hosni Mubarak.
A razão imediata do novo ânimo, algo que motivava discussões intensas, foi a transmissão de uma entrevista com Wael Ghonim, o executivo do Google que desapareceu em 27 de janeiro. A última mensagem que ele postou em sua conta de Twitter antes de ser detido dizia "rezem pelo Egito" e avisava sobre um "crime de guerra" planejado pelo governo.
Ghonim reapareceu em 7 de fevereiro, depois de ter sido mantido vendado, em local não revelado, por capangas de segurança de Mubarak, e voltou a tuitar: "A liberdade é uma bênção que merece que lutemos por ela". Na tarde seguinte, ele se juntou às dezenas de milhares de manifestantes na praça, energizando a multidão.
Sua entrevista, uma das transmissões mais assistidas no Egito, foi arrasadora. Ele disse: "Esta foi uma revolução da juventude de todo o Egito; eu não sou herói" e desabou quando lhe foram mostradas fotos de alguns dos mortos.
Ghonim é um herói, e a cena na praça representa uma ruptura do Estado de segurança de Mubarak, que pisoteia sobre as liberdades, do qual esse Estado não vai se recuperar. Os árabes estão fartos de serem "desaparecidos" por capangas. Uma geração de egípcios jovens, interligados pelo Facebook, despertou o país do seu sono prolongado. Aconteça o que acontecer, o Egito e o mundo árabe não vão acomodar-se novamente nos velhos hábitos de repressão, eleições fraudadas e silêncio acovardado. O "Parque Jurássico" árabe chegou ao fim de sua vida.
Talvez eu deva dizer algo sobre este apartamento. Ele pertence a um artista solidário com o levante. Há dias, vem funcionando como centro organizacional de algo que é um movimento muito difuso. Não existe um líder. Existe uma vontade única, interligada pela tecnologia, de mandar Mubarak embora, de "vê-lo pelas costas", como me disse Mohamed ElBaradei, figura oposicionista.
Um estudante trouxe seu pai, executivo de uma multinacional. "Tenho tanto orgulho de meu filho", me disse o pai. Perguntei por quê. "Porque nunca antes os egípcios se uniram para lutar por uma coisa simples: a liberdade."
É verdade: os egípcios não conhecem a liberdade ou o Estado de direito desde a revolução de 1952 que conduziu ao poder o general Abdel Nasser e seus cúmplices militares. Eles já conheceram visões de mundo diferentes -o socialismo pan-árabe de Nasser, a abertura à América de Anwar el-Sadat, a continuidade de Mubarak, obcecada pela segurança-, mas nunca conheceram a liberdade de expressar o que pensam. A consequência disso é que o lugar antes central ocupado pelo Egito no mundo árabe em vários momentos pareceu ter se tornado periférico. São as pessoas lá embaixo, na praça, que estão restaurando a posição central do Egito -e os efeitos que se espalham, chegando à Jordânia e ao Iêmen, são poderosos. É um longo caminho de volta de 60 anos de opressão, mas o processo já começou.
Em capitais em volta do mundo, líderes e autoridades estão fazendo seus cálculos. Será que um Egito democrático vai pender para o islamismo? Pode Mubarak ser sacrificado sem que o país descambe para o caos? Como ficará o tratado de paz com Israel se Mubarak se for? Neste momento, neste lugar, é o espírito da praça Tahrir que responde a todas essas perguntas -um espírito que reúne gerações e ideologias diferentes em cooperação, que está comprometido com a não violência, determinado a aderir às concessões mútuas que fazem parte da liberdade, um espírito que é forte em sua unidade. Talvez isso não seja resposta suficiente. Mas é uma resposta potente, e, vista desde onde estou, parece ser irrefutável.

Envie comentários para o e-mail intelligence@nytimes.com


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