São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

TENDÊNCIAS MUNDIAIS

Arranha-céu vira casa de desesperados

Vista incrível, mas sem elevador e com poucos corrimãos

Por SIMON ROMERO
e MARÍA EUGENIA DÍAZ

CARACAS, Venezuela - Os arquitetos ainda chamam o arranha-céu de 45 andares de Torre de David, por causa de David Brillembourg, o financista ousado que a construiu na década de 1990. O heliporto na cobertura continua intacto, um lembrete das limusines aéreas que deveriam pousar ali, trazendo banqueiros para o trabalho.
A torre de escritórios, um dos arranha-céus mais altos da América Latina, deveria ser um emblema da bravura empresarial da Venezuela. Mas essa era terminou. Hoje, invadido por mais de 2.500 sem-tetos, o prédio simboliza algo totalmente diferente no centro da capital.
Os squatters moram no edifício inacabado, que carece de várias amenidades básicas, como um elevador. O cheiro de esgoto não tratado invade os corredores.
O arranha-céu, cercado por outdoors e murais que proclamam o avanço da "revolução bolivariana" do presidente Hugo Chávez, é um símbolo da crise financeira que atingiu o país nos anos 90, da expansão do controle estatal da economia desde que Chávez assumiu o governo em 1999 e da falta de moradias que se agravou desde então, levando à invasão generalizada de imóveis nesta cidade.
Poucos terraços do prédio têm grades de proteção, mas dezenas de antenas de TV via satélite salpicam os balcões. A torre oferece algumas das vistas mais belas de Caracas.
"Eu nunca deixo minha filha fora de vista", disse Yeaida Sosa, 29, que vive com sua filha de 1 ano, Dahasi, no sétimo andar, sobre a movimentada Avenida Andrés Bello. Sosa disse que os moradores ficaram horrorizados depois que uma menina morreu recentemente ao cair de um andar elevado.
"Deus decide quando vamos entrar em seu reino", disse Enrique Zambrano, 22, um eletricista que mora no 19° andar. Como muitos outros invasores do arranha-céu, Zambrano diz que é um cristão evangélico.
Seu pastor é Alexander Daza, 33, um ex-membro de gangue que encontrou a religião na prisão. Daza, conhecido como El Niño, ou "o Menino", liderou a ocupação da Torre de David em outubro de 2007.
Na época, o edifício já estava desocupado havia mais de uma década. Seu construtor, David Brillembourg, um destemido criador de cavalos, morreu de câncer aos 56 anos em 1993, deixando para trás empresas em dificuldades. O governo absorveu seus ativos, incluindo o edifício inacabado, durante uma crise bancária em 1994.
Caracas, que já foi uma das cidades mais desenvolvidas da América Latina, hoje enfrenta uma aguda falta de moradias -cerca de 400 mil unidades-, o que provoca as invasões de edifícios. Na área em torno da Torre de David, outras 20 propriedades foram invadidas, incluindo as torres Viasa e Radio Continente. Elefantes-brancos por toda a cidade, como o shopping center Sambil, perto da Torre de David, hoje confiscados pelo governo, abrigam vítimas de enchentes.
A construção privada de moradias virtualmente parou devido aos temores de desapropriação pelo governo. Paralisado pela ineficiência, o governo construiu poucas habitações para os pobres. Esporadicamente, Chávez ordena a remoção dos invasores. Mas, em janeiro, ele mandou os pobres ocuparem terrenos não utilizados em áreas afluentes da capital.
Os invasores da Torre de David, que vivem em 28 andares e pretendem subir mais, criaram uma ordem improvisada no interior do arranha-céu.
Sentinelas com rádios guardam as entradas. Cada andar habitado tem eletricidade, em ligações clandestinas à rede, e a água é transportada desde o térreo. Os moradores não gostam de ser chamados de invasores, preferindo a palavra menos agressiva "morador".
Quase todos os andares têm um pequeno bar. Alguns moradores possuem carros estacionados na garagem do edifício. Outros apontam com orgulho para seus físicos torneados, resultado de subir e descer as escadas diariamente.
José Hernández, 30, dorme com sua mulher e a filha em uma cama sob o mosquiteiro, proteção contra a dengue. Em seu apartamento, construído para ser o escritório de um banqueiro, ele mostrou a vista, que inclui o minarete de uma mesquita e, à distância, Petare, a colcha de retalhos de favelas nos morros onde ele cresceu. Hoje, Hernández usa paletó e gravata todos os dias, pois trabalha em um banco.
"Eles me chamam de invasor, e eu trabalho no departamento de crédito do Banco da Venezuela", disse Hernández, referindo-se à instituição estatal que, segundo ele, o emprega. "A sociedade nos odeia, e o governo não sabe o que fazer conosco. Eles realmente acham que queremos morar na Torre de David?"


Texto Anterior: Lente: A grande corrida para a frente

Próximo Texto: Inteligência/Roger Cohen: A reboque da mudança energética
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.