São Paulo, segunda-feira, 14 de março de 2011

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Gênero chinês ressurge e causa riso subversivo

Por BENJAMIN HAAS

PEQUIM - Usando óculos escuros apesar de ser de noite, Guo Degang era o centro das atenções na sala privada de um clube, enquanto amigos lhe presenteavam com bebidas finas, cogumelos raros e obras de arte.
Poderia ser uma cena tirada de adaptação chinesa de "O Poderoso Chefão", mas Guo é um comediante responsável por recuperar a forma tradicional de comédia chamada "conversa cruzada". Ele tem atraído chineses jovens e de meia idade para plateias antes dominadas por idosos.
O governo apoia o rejuvenescimento da "conversa cruzada", mas alguns comediantes a usam para lançar farpas contra questões políticas e sociais. Guo, 37, cutuca a polícia, os burocratas e as celebridades. "Estou animado por dizer algumas coisas que não eram permitidas no rádio, que os canais de TV simplesmente não levariam ao ar", disse Guo no início de uma apresentação em uma casa de chá. "A polícia bate nas pessoas só por bater, grita com as pessoas só por gritar, mais violentamente do que qualquer bandido. Os gângsteres são educados. Eles ajudam quem precisa. Então quem é o bandido e quem é a polícia?" A palavra chinesa para a "conversa cruzada" é "xiangsheng", literalmente "cara e voz". Ela surgiu durante a dinastia Qing como arte de rua. Geralmente, consiste em dois artistas com trajes tradicionais, mantendo um diálogo espirituoso.
Ao longo da história desse gênero, aspirantes a comediantes oriundos de famílias pobres passavam três anos sendo preparados por um mestre e, depois, passavam uma temporada se apresentando com o professor antes de se lançarem na carreira solo. Guo aprendeu a técnica a partir dos sete anos e nem concluiu o ensino médio. Em 1995, ele deixou Tianjin, sua cidade natal, para abrir seu primeiro clube em Pequim.
Nos últimos anos, ele abriu mais dois clubes-restaurantes, além de aparecer em filmes chineses de sucesso. O faturamento dos seus shows, no ano passado, foi estimado em cerca de US$ 3 milhões.
Mas mestres como Guangquan Ding, 76, consideram que a "conversa cruzada" está sendo marginalizada pelos controles políticos. Outros veteranos do gênero dizem que os espetáculos estão excessivamente comerciais, e que isso neutraliza sua graça tradicional.
Durante a Revolução Cultural, a "conversa cruzada" foi usada como ferramenta de propaganda do regime. Depois, um breve período de abertura foi rapidamente revertido. Assuntos inócuos como os congestionamentos de Pequim passaram a ser proibidos nas apresentações pela TV, pelo rádio e pela internet. "Há muitas piadas sobre produtos falsificados e alimentos contaminados, mas nenhuma delas é colocada na internet", lamentou Yang Chu, 31, um ávido fã do gênero. "Se fossem colocadas, todos assistiriam, e os vídeos seriam retirados imediatamente."
Nem mesmo a imensa popularidade de Guo bastou para blindá-lo, quando um assistente seu se envolveu numa briga com um repórter de TV em Pequim no ano passado.
A emissora CCTV usou uma campanha do governo contra a "vulgaridade" na indústria do entretenimento para criticar algumas das piadas mais lascivas de Guo. Seus clubes foram temporariamente fechados, e seus livros e CDs foram retirados das livrarias.
O acesso da população chinesa a gêneros mais explícitos de entretenimento poderá um dia relegar a "conversa cruzada" a uma forma obscura de arte folclórica.
"Antes, a 'conversa cruzada' era uma forma de se comunicar com as pessoas, de educar as pessoas", disse Ding. "Tinha de ser tão bom quanto ouvir rádio ou ler um livro. Mas, hoje, quem faz 'conversa cruzada' está fazensó pelo dinheiro.


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