São Paulo, segunda-feira, 14 de setembro de 2009

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Ensaio
Nicholas Kulish

Ressentimentos voltam a atormentar a Bósnia


Violência é ameaça em país que deixou de ser prioridade

BERLIM — Quase 14 anos depois do acordo para a paz na Bósnia, as montanhas em torno de Sarajevo ainda são capazes de levar um visitante a ter pensamentos incômodos sobre franco-atiradores.
Quando estive lá, em maio, acompanhando viagem do vice-presidente dos EUA, Joe Biden, a violência dos anos 1990 não me pareceu tão distante. Biden também fizera escalas na Sérvia e em Kosovo, para tentar atrair atenção à região. Ele fez seu discurso mais severo diante do Parlamento bósnio, advertindo contra a possibilidade de se recair em “padrões ultrapassados e animosidades antigas”.
Biden não é o único a lançar avisos. Na edição mais recente de “Foreign Affairs”, sob o título “A Morte [do acordo] de Dayton”, Patrice C. McMahon e Jon Western escrevem que, devido às divisões étnicas que se negam a desaparecer, à corrupção generalizada e ao impasse político, “o país hoje se encontra à beira do colapso” e que, “se não forem freadas, as tendências atuais à fragmentação quase certamente levarão à retomada da violência”.
Quer isso venha acontecer, quer não, a força de manutenção da paz que supostamente deveria reprimir eventual violência hoje conta com menos de 2.000 soldados. Nem sempre foi assim. Houve época em que bastava a simples menção à palavra “Bósnia” para evocar os estupros, os casos de tortura, as casas queimadas e as valas coletivas que restaram de uma guerra que durou três anos e meio e deixou cerca de 100 mil mortos, em sua maioria muçulmanos.
Mas isso foi há muito tempo. Para boa parte do Ocidente, a Bósnia hoje é um lugar quase esquecido e no fim da lista de prioridades, atrás de países como Iraque, Irã e Coreia do Norte.
Como que para reforçar esse ponto, o arquiteto principal dos acordos de paz de Dayton no governo de Bill Clinton (1993-2001), Richard Holbrooke, hoje enviado especial de Barack Obama, está ocupado com a guerra no Afeganistão e a complexa situação no Paquistão, país nuclearmente armado. Nos últimos anos, Holbrooke vem se queixando de “uma comunidade internacional cuja atenção está voltada para outros lugares”.
Se o fato de a atenção pública ter se afastado da Bósnia se deve à existência de problemas mais prementes nesta era de terrorismo e Estados nucleares irregulares, é também função de uma realidade simples: que esse país etnicamente dividido se encontra hoje no meio de uma Europa muito mais estável que a Europa dos tempos de guerra.
É bem possível que a Bósnia retorne à violência, mas ela perdeu boa parte do que se poderia descrever como sua ameaça Francisco Ferdinando. Apesar de todos os argumentos morais e humanitários em favor de a Europa envolver-se na dissolução violenta da Iugoslávia, havia também a lição grave dada pelo assassinato do arquiduque Ferdinando em 1914, faísca que provocou o incêndio da Primeira Guerra Mundial. A lição foi simples: os conflitos começam nos Bálcãs, mas não necessariamente ficam apenas ali.
A União Europeia tem suas próprias preocupações, que incluem o envelhecimento acelerado da população, prevista para encolher em 50 milhões de pessoas até 2050, e problemas sérios com a integração dos imigrantes de que necessita para reverter a queda demográfica. A invasão russa da Geórgia, no ano passado, serviu de lembrete grave de que as coisas ainda podem se complicar, e, com certeza, deixou alguns países-membros mais recentes da UE, como Polônia e Estônia, incertos em relação à resistência da barreira.
Uma possível retomada de hostilidades na Bósnia pode não dar o pontapé inicial numa Terceira Guerra, mas pode espalhar-se para outras partes da antiga Iugoslávia, incluindo Kosovo. Este declarou sua independência no ano passado, e a Embaixada dos EUA na capital sérvia, Belgrado, foi incendiada por manifestantes enfurecidos.
Assim, foi uma agradável surpresa retornar com Biden neste ano e encontrar sérvios comuns nas mesmas ruas reagindo com pragmatismo à visita de um político americano que não apenas representa a superpotência que os bombardeou, como deu apoio pessoal precoce e resoluto aos muçulmanos na Bósnia e em Kosovo. A maioria dos sérvios disse que a existência de empregos e a liberdade para viajar valem mais que inimizades antigas.
Com sorte, esse mesmo sentimento será ainda mais ecoado na vizinha Bósnia, pesando mais que as vozes radicais. Em vista de quão longe a atenção do mundo se desviou, os defensores da paz nos Bálcãs terão que torcer para encontrarem sozinhos o caminho à moderação. Se isso não acontecer, o pipocar das balas de franco-atiradores e o silvo de morteiros podem anunciar o espetáculo terrível de um retorno evitável ao derramamento de sangue.


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