São Paulo, segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

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ENSAIO

DAVID SANGER

O devedor no qual o mundo ainda aposta

Em todo o planeta, confia-se que os Estados Unidos irão superar seu impasse político e resolver seus problemas

Contas no vermelho até onde a vista alcança não afetam leilões do Tesouro

France presse - Getty Images


WASHINGTON
Há décadas -passando por épocas de turbulência política, guerras e surtos de deficit ou inflação- a dívida dos Estados Unidos sempre é qualificada como AAA, o padrão-ouro do crédito, diante do qual todas as nações são comparadas.
Isso foi verdade antes de o presidente Barack Obama publicar recentemente o seu Orçamento, com projeções de enorme deficit na próxima década e além. Surpreendentemente ou não, continuou verdade depois dessas estimativas. Claro que, se fosse uma empresa qualquer dos EUA prevendo contas no vermelho até onde a vista alcança, ninguém emprestaria um centavo.
O mais próximo de um alerta que Washington recebeu veio da agência Moody's, que faz avaliações da dívida soberana dos países: sem medidas contra o deficit ou uma recuperação mais rápida que a esperada, as projeções para a década "irão em algum ponto pressionar a cotação AAA dos títulos públicos".
Ninguém piscou -nem o Congresso dos EUA, nem a Casa Branca, nem os investidores mundo afora, que continuam comprando, com juros baixos, títulos do Tesouro americano para financiar o deficit de US$ 1,6 trilhão neste ano.
O que explica isso? Por que o mundo aposta que os EUA irão superar seu impasse político e resolver seus problemas -acreditando, ao que parece, na verdade da frase mordaz de Churchill, segundo a qual a América sempre faz tudo certo, depois de esgotar as demais alternativas? E quanto irá durar essa aura de invencibilidade?
Talvez muito, muito tempo. Uma das muitas coisas que tornam os EUA diferentes é que o país imprime a moeda mais importante do mundo e sempre pode imprimir mais -uma razão para os investidores continuarem acreditando no pagamento dos títulos da dívida, ainda que em dólares desvalorizados pela inflação ou pelo câmbio.
Também existe valor em ser uma nação da qual todo o mundo ainda depende para a segurança. Isso ajuda a explicar por que investidores estrangeiros, inclusive a China, podem denunciar políticos americanos, banqueiros de Wall Street e reguladores sonâmbulos por criarem a atual confusão -e mesmo assim comparecem ao próximo leilão do Tesouro.
Esse paradoxo ficou excepcionalmente claro recentemente. Quando o mercado acionário se estremeceu, no último dia 4, por causa da preocupação com moratórias nacionais, não era a montanha de dívidas em Washington que causava inquietação geral. Era o drama de alguns esbanjadores da Europa -especialmente Grécia, Espanha e Portugal-, cujas dívidas, comparativamente baixas, de repente fizeram deles duvidosos riscos creditícios.
Todos esses países conhecem o significado do termo "gigantismo imperial". Mas já faz alguns séculos que Madri e Lisboa eram centros de vastos impérios, e muito mais para os gregos. O que os derrubou desta vez não foi a ambição global, mas um impasse local, em que os políticos não conseguiram, ou não quiseram, cortar gastos em um momento de desemprego elevado e necessidades sociais.
Para piorar, eles agora estão no euro -o que significa que não podem mais imprimir moeda para sair do problema. E não está claro se os seus parceiros no bloco do euro podem se dar ao luxo de resgatá-los ou permitir um calote.
"Eles não têm nenhuma opção fácil", disse Simon Johnson, professor da Escola Sloan de Administração do Massachusetts Institute of Technology (MIT). "Podem cortar gastos ou elevar impostos."
Esses problemas podem parecer pequenos em comparação aos do Japão, uma combalida superpotência econômica que imprime sua própria moeda e cujos jornais, há duas décadas, costumavam publicar quadros projetando quando o país superaria os Estados Unidos como maior economia do mundo. Os jornais ainda publicam gráficos, mas hoje a questão é quando a China vai superar o Japão como número dois (provavelmente neste ano).
Hoje, como a Toyota, o governo japonês tem um problema de freios -não sabe como brecar os gastos com uma população que envelhece rapidamente, e como todo o mundo reagiu à recessão pisando no acelerador dos gastos.
Mas, ao contrário dos EUA, o Japão já não é considerado tão indispensável. Por um quarto de século teve a nota AAA, e então a perdeu. Agora, a Standard and Poor's faz alerta de que pode rebaixar ainda mais o Japão por não ter "contido pressões fiscais e deflacionárias".
As autoridades financeiras japonesas se arrepiam quando alguém lembra que sua atual nota de crédito coloca o país junto com Eslovênia e Chile. Mas, no próximo ano, as coisas podem piorar: a dívida pública japonesa deve atingir US$ 9,4 trilhões, ou 181% do PIB. Por esse critério, os EUA ainda parecem bem, mesmo que só por comparação.
Em 1990, cair tão baixo era algo impensável no Japão. O que leva à pergunta: e os EUA em 2030? O impensável pode ocorrer também?
Jeffrey Garten, ex-diretor da Escola de Administração de Yale, não descarta tal hipótese. "Algo mudou", disse ele. "A crise financeira criou uma tamanha sensação de incerteza sobre as suposições de todos que o nosso relativo declínio agora é reconhecido. A possibilidade de que os Estados Unidos possam não ser inquestionavelmente o melhor risco de crédito do mundo agora é discutida. E isso é significativo, porque muito [desse mercado] é psicológico."


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