São Paulo, segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

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Morte ronda rodovia no Afeganistão

Por DEXTER FILKINS

SAROBI, Afeganistão - Mesmo em uma nação acossada pela guerra e pelos atentados suicidas, seria difícil encontrar algo tão aterrorizante quanto a rodovia nacional que passa pelo Desfiladeiro de Cabul.
O trecho de 64 km entre Cabul e Jalalabad, com seus abismos de tirar o fôlego, deixa tantos mortos com tamanha regularidade que a maioria das pessoas já parou de contar há muito tempo.
Carros capotam e são amassados. Caminhões voam para o fundo do vale. Ônibus disputam a preferência e colidem. Tudo isso se dá em um dos cenários mais encantadores do planeta. A garganta, que em alguns pontos tem poucas centenas de metros de largura, é emoldurada por despenhadeiros rochosos verticais que se erguem a mais de 600 metros sobre o rio Cabul. A maioria dos carros bate -e a maioria das pessoas morre- em uma das curvas impossíveis, que oferecem vistas igualmente impossíveis de rachaduras e morros deixados pela erosão.
De fato, dirigir no Desfiladeiro de Cabul parece ser uma experiência afegã ímpar, uma complicada dança de beleza e morte.
"Sento aqui e vejo as pessoas baterem o dia inteiro", disse Mohammed Nabi, que frita peixe em uma barraca à beira da estrada. "O curso da história tem provado que os afegãos são valentões. Por isso, não conseguem dirigir em segurança."
Numa semana recente, houve 13 acidentes na estrada em apenas duas horas, todos catastróficos, quase todos fatais. A garoa persistente tornou esse dia ligeiramente mais calamitoso que o normal. Em um ponto, uma família ensanguentada chorava por seu parente preso nas ferragens de um carro. Em outro, um micro-ônibus estava esmagado sob a carroceria de um caminhão dobrado qual um canivete. Num terceiro, uma vala estava preenchida pelos restos retorcidos de um veículo.
Mesmo assim, os veículos continuam passando imprudentemente por esses acidentes espalhados pela estrada. Táxis e ônibus costuram e se ultrapassam a velocidades horripilantes, separados por milímetros de uma sangrenta catástrofe.
"O combate contra o Taleban dura apenas um ou dois dias, mas as colisões são diárias", disse Juma Gul, dono de uma loja de tecidos na localidade de Sarobi, com vista para a rodovia. "É uma espécie de teatro. Às vezes um carro sai voando."
A letalidade da rodovia deriva de uma mistura única da geografia afegã com a própria estrada e o desrespeito dos motoristas pela física. Com duas pistas, ela mal é suficiente para que dois carros passem.
Na pista de dentro, a menos de um metro da sua janela há uma parede de rochas sem árvores, que se ergue de forma quase perpendicular. Um peitoril de 30 cm protege a pista de fora, e atrás dele, até 300 m abaixo, fica o fundo do vale. Para os motoristas, evidentemente isso significa que não há margem de erro; ou eles batem na parede, ou voam sobre o peitoril, ou colidem entre si.
A única nota de cautela vem de crianças, algumas com quatro ou cinco anos, que vivem nas aldeias miseráveis dos arredores. Elas costumam ficar nas curvas, usando garrafas plásticas verdes amassadas como bandeiras, que agitam para os motoristas quando o caminho está livre.
Sob tais circunstâncias, seria de imaginar que os motoristas trafegam lentamente, esticando o pescoço para ver o que vem na próxima curva. Quase sempre foi assim mesmo.
Ao longo dos séculos, incontáveis forças invasoras passaram pelo vale ou perto dele a caminho da passagem de Khyber. Entre elas estava um grupo 17 mil civis e militares britânicos massacrados ao baterem em retirada de Cabul, ao final da primeira Guerra Anglo-Afegã, em 1842. William Brydon, que chegou a Jalalabad a cavalo, foi o único europeu a sobreviver.
A estrada Cabul-Jalalabad foi pavimentada pela primeira vez pelo governo alemão ocidental em 1960. Na década de 1980, ela foi quase inteiramente destruída em meio à insurreição contra a invasão soviética.
Durante a década que se seguiu, quando o Taleban e outros grupos armados disputavam o controle do país, a estrada virou uma dinamitada paisagem lunar. As crateras eram tão grandes que às vezes os táxis sumiam por vários minutos, para reaparecerem depois numa luta para sair do buraco.
Era uma estrada dura, que tinha seus perigos -trechos desabados ou varridos-, mas a velocidade não era um deles. Isso mudou em 2006, quando um projeto apoiado pela União Europeia finalmente pavimentou todo o trajeto. Agora, os afegãos poderiam afinal guiar tão rápido quanto quisessem. E, assim, os carros batem, um atrás do outro.
A cada dia, gente fraturada e ensanguentada chega ao hospital Sarobi, na cidade que fica na ponta do vale. O próprio médico Jabbar Khel passa várias vezes por semana pela estrada. E diz que sempre tem medo -não por suas habilidades, mas pelas dos outros. "Eu tenho carteira de motorista!", disse o médico. "Tive aulas!"


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