São Paulo, segunda-feira, 16 de maio de 2011

Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

O lado negro de um peixe global

O sucesso da tilápia pode ser uma ameaça à saúde e ao meio ambiente

Por ELISABETH ROSENTHAL
Água Azul, Honduras

Uma conhecida passagem bíblica diz que Jesus alimentou 5.000 pessoas com cinco pães e dois peixes, que os estudiosos supõem serem tilápias.
Mas, aqui na fazenda de piscicultura Aquafinca, milagres modernos ocorrem diariamente: dezenas de milhares de tilápias carnudas são retiradas de viveiros lotados no lago Yojoa, viram filés num abatedouro gelado e viajam de avião para os EUA, onde algumas serão servidas em 12 horas.
Os americanos comeram 215 mil toneladas de tilápia no ano passado, o quádruplo do que há uma década, fazendo desse peixe nativo da África, outrora obscuro, o mais popular pescado de cativeiro no país. Enquanto os peixes capturados na natureza predominam na maioria das espécies, no caso da tilápia, a vasta maioria é "colhida" em viveiros na América Latina ou na Ásia.
Considerada uma "galinha aquática", por ser fácil de procriar e por causa do gosto insípido, a tilápia é perfeita para a criação industrial: se satisfaz com ração de soja e milho e ganha peso rapidamente. "Dez anos atrás, ninguém tinha ouvido falar dela; agora, todo mundo quer por não ter gosto de peixe, especialmente hospitais e escolas", disse Orlando Delgado, gerente-geral da Aquafinca.
A tilápia de cativeiro é promovida como algo bom para a saúde e para o meio ambiente em um momento em que muitos recursos marinhos estão gravemente saturados. Em comparação a outros peixes, porém, a tilápia contém quantidades relativamente pequenas dos benéficos ácidos graxos ômega-3, que são a principal razão pela qual os médicos recomendam o consumo frequente de peixes; o salmão possui uma quantidade mais de dez vezes superior. "Pode parecer peixe e ter gosto de peixe, mas não tem os benefícios -o que pode ser prejudicial", disse Floyd Chilton, professor de fisiologia e farmacologia do Centro Médico Batista Wake Forest, em Winston-Salem, na Carolina do Norte.
Ambientalistas argumentam que a falta de regulamentação na criação de tilápias está afetando os ecossistemas localizados em países pobres. Os defensores da prática, por sua vez, alegam que o setor já começou a melhorar seus padrões.
O Conselho de Manejo da Aquicultura, criado pela entidade conservacionista WWF e pelo IDH, um programa holandês de comércio sustentável, está lançando um sistema de inspeção para criadouros de tilápias. A Aquafinca foi a primeira empresa a ter seu peixe certificado como "criado responsavelmente".
Os defensores da criação em cativeiro dizem que ela tende a crescer por gerar alimentos e empregos.
"Haverá mais peixes de cativeiro a cada ano", disse Kevin Fitzsimmons, biólogo da Universidade do Arizona. "Pense nisso: se tentássemos obter carne [apenas] da caça, haveria muita gente faminta."
Nativa de lagos africanos, a tilápia foi implantada em muitos países tropicais pobres, na segunda metade do século 20, para que controlasse a proliferação de algas e mosquitos. Mas "talvez não tenha sido a melhor ideia", disse Aaron McNevin, biólogo do WWF. "É uma das mais invasoras espécies conhecidas. É muito difícil se livrar dela uma vez que está estabelecida", afirmou.
Na década de 1990, as empresas viram uma oportunidade na criação desse peixe robusto. Usando a reprodução seletiva, cientistas criaram as linhagens industriais de hoje: peixes grandes, carnudos, com cabeça e rabo pequenos, e intestinos que lhes permitem absorver alimentos mais rapidamente. A tilápia de cativeiro atinge seu peso comercial, em torno de 1 quilo, após cerca de nove meses de alimentação intensiva.
"A natureza serve para manter as espécies; o que nós fazemos é produzir filés", disse Danilo Sosa, técnico de aquicultura da empresa Nicanor, localizada nos arredores de Manágua.
Para o consumidor que escolhe tilápias da China, de Honduras ou do Equador, há pouca orientação. "É uma tarefa complicada decidir o que comer, com a produção da aquicultura se expandindo tão rapidamente", disse Peter Bridson, gerente de pesquisas em aquicultura do Aquário da Baía de Monterey, na Califórnia. O aquário produz o popular "Seafood Watch", um guia independente para o consumo de peixes sustentáveis.
Por enquanto, esse guia lista a tilápia criada nos EUA como "a melhor escolha", a tilápia da América Latina como uma "boa alternativa", e a tilápia da China como "a ser evitada". Bridson disse que essas classificações se baseiam principalmente na presença de um controle eficaz nesses lugares, e na forma como os criadouros eliminam seus resíduos.
Mas muitos biólogos temem que os lucros desse negócio acabem falando mais alto que a cautela, deixando lagos mortos e espécies extintas.
O biólogo Jeffrey McCrary passou a última década estudando como uma pequena e efêmera criação de tilápias degradou o lago Apoyo, na Nicarágua. "Um pequeno viveiro estragou o lago inteiro -o lago inteiro!", disse ele sobre a criação, que durou de 1995 a 2000. Os dejetos dos viveiros poluíram o ecossistema, e algumas tilápias escaparam.
Uma planta aquática chamada chara, importante alimento para os peixes, desapareceu do lago. Agora, algumas espécies de plantas e peixes estão lentamente se recuperando, mas outras, possivelmente, sumiram para sempre, de acordo com McCrary, que trabalha para a entidade nicaraguense Fundeci.
Salvador Montenegro, diretor do Centro Nicaraguense de Pesquisa dos Recursos Aquáticos, há uma década, luta para fechar a criação da Nicanor no lago Nicarágua, alegando que ela "ameaça um lago que é um tesouro nacional". Peixes mais fracos, como o guapote, têm desaparecido do lago. Mas David Senna, gerente de Nicanor, disse que os viveiros da empresa ocupam apenas uma pequena fração do lago, e que há correnteza suficiente para dispersar os dejetos dos peixes. Ele observou que a espécie foi introduzida no lago Nicarágua na década de 1980, "então, se [a tilápia] fosse dominar, [o lago] já estaria condenado".
Para os médicos, o debate gira em torno do valor nutricional da tilápia. Bruce Holub, professor de ciência da nutrição na Universidade de Guelph, em Ontário, disse que a tilápia é uma fonte de proteína e contém algum ômega-3. Mas alguns especialistas se preocupam com estudos mostrando que outro tipo de ácido graxo, o ômega-6, supera o benéfico ômega-3 nas tilápias de cativeiro numa proporção de dois para um. Algumas pesquisas sugerem que essa relação aumenta o risco de doença cardíaca.
A Clínica Mayo, entidade americana de pesquisas médicas, alerta que a tilápia "não parece ser tão saudável para o coração". E grande parte da tilápia que chega ao mercado mundial provém da China, que exporta o peixe congelado e embalado em monóxido de carbono, a fim de preservar sua cor e parecer fresco ao ser descongelado para a venda no varejo.
"As pessoas queriam pagar US$ 3,99 por uma libra [454 gramas] desse troço congelado, em vez de US$ 5,99 pelo peixe fresco, especialmente durante a recessão", disse Senna, da Nicanor.
Os criadouros chineses são considerados mal regulamentados, afirmou Bridson, e, por isso, o setor precisa de normas mais claras. Enquanto isso não ocorre, o produto mais barato está destinado a vencer.
"Se eu tenho cem tilápias num lago, eu posso ter tilápias felizes, porque elas têm espaço para nadar, mas não vou ser capaz de vendê-las, pois não terei acesso ao mercado global", disse McCrary, acrescentando que "não existe o equivalente ao frango caipira em termos de tilápias".
Colaborou Blake Schmidt, de Manágua (Nicarágua)


Próximo Texto: Lente: Uma combinação perfeita
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.