São Paulo, segunda-feira, 18 de outubro de 2010

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Música erudita também é "metaleira"

Por DANIEL J. WAKIN
Um homem alto e elegante, vestindo calça de algodão e camisa xadrez verde, passou por carcaças de veículos, caçambas de lixo e pedaços de material sem identificação.
Em uma das mãos, ele levava uma marreta, e seus olhos brilhavam ao enxergar peças de sucata capazes de gerar boa música. Parou diante de uma pilha de tanques de gasolina, e dali tirou um virtuoso solo de bateria.
O homem, Christopher Lamb, é o percussionista principal da Filarmônica de Nova York, e, nesse dia quente no final do mês passado, ele foi com colegas de orquestra e com o compositor Magnus Lindberg a um ferro-velho, em busca de peças metálicas para interpretar "Kraft", de Lindberg.
Trata-se de uma obra gigantesca e complicada para orquestra, solos de instrumentos amplificados e percussão -muita percussão. Os solistas, inclusive um violoncelista, um clarinetista e um pianista, também são convocados para os instrumentos de percussão, muitos deles espalhados pelo auditório.
Lindberg solicita que os músicos visitem um ferro-velho na região da apresentação e encontrem instrumentos. "É parte da tradição da obra", afirmou. "Ela tem de ter um som local."
"Kraft", concluída em 1985, já teve mais de 20 apresentações, o que significou visitas a depósitos de sucata nos arredores de Londres, Paris e Porto. "Sempre fiquei surpreso com o número de apresentações que já houve, dada a complexidade", disse Lindberg.
O finlandês, compositor-residente da Filarmônica, disse que sua ideia era injetar uma camada de sons predominantemente secos e metálicos entre os instrumentos de percussão habituais, que têm maior ressonância. "É apenas acrescentar um tempero", disse ele, "mas um tempero bem apimentado".
Lindberg diz que, ao compor "Kraft", se inspirou nos compositores Edgard Varèse e Iannis Xenakis, no rock industrial que escutava quando viveu em Berlim, e em sons da cidade: trânsito, demolição e construção.
O uso de instrumentos de percussão achados por aí não é novidade. Trata-se de uma saudável tradição do século 20, nas obras de Lou Harrison, Henry Cowell e outros. Recentemente, o compositor Joseph Bertolozzi, que vive em Beacon, Estado de Nova York, criou uma peça com sons percussivos feitos numa ponte do rio Hudson.
Lou Mannarino, engenheiro de som encarregado de "Kraft", guiou a orquestra pelo desmanche de carros. Num lado, uma fila de portas de veículos soltas; mais adiante, vários carros sem a parte da frente. Aqui, uma pilha de pneus; acolá, um mar de suspensões de roda. Lamb estava muito ocupado, passando rapidamente de uma pilha a outra. Mannarino segurou uma mola, da qual Lamb, com uma marretada, arrancou um ruído melodioso. "Preciso de quatro", declarou.
Com um parafuso enferrujado, Lindberg bateu num pedaço de lata, que reagiu com um ruído abafado. "Este é um bom som", sentenciou.
Os músicos também recolheram grandes tanques cilíndricos, com cerca de 1,5 metro de altura e válvulas em cima, para ser cortado em diferentes tamanhos, gerando tons variados. "Eu os quero para o futuro", afirmou Lamb.
Após cerca de uma hora, os músicos tomaram seus assentos nos carros. Um comprador de autopeças parou para perguntar o que estava acontecendo. Ao ouvir que os ocupantes eram músicos, ele perguntou: "E o que vamos cantar?".
Eles integram a Filarmônica de Nova York foi a resposta. "Ah, ótimo", afirmou o homem, e saiu andando, apressado, sem dizer mais nenhuma palavra.


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