São Paulo, segunda-feira, 20 de junho de 2011

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice | Comunicar Erros

ARTE & ESTILO

MICHAEL KIMMELMAN
ENSAIO


Para os curdos da Turquia, autonomia nas artes

DIYARBAKIR, Turquia - Não muito tempo atrás, tocar música curda em um alto-falante nas ruas poderia provocar a polícia.
Hoje, centenas de CDs de cantores pop curdos preenchem uma parede na pequena loja Vizyon Muzik Market. Abdulvahap Ciftci, o curdo de 25 anos que dirige o lugar, me disse que os clientes compram cerca de 250 discos curdos por semana. "E talvez eu venda um disco turco." Há meses, ativistas pró-curdos vêm realizan
do manifestações que, nas últimas semanas, se transformaram cada vez mais em confrontos violentos com a polícia nesta região fortemente curda do sudeste da Turquia. Capitalizando a Primavera Árabe, assim como o apoio declarado pela Turquia aos reformistas egípcios nas eleições deste mês, os curdos turcos pressionaram por uma maior representação parlamentar e por mais liberdades políticas e culturais.
Desde a década de 1920, quando a Turquia começou a assimilar à força os curdos, aproximadamente 20% da população, em um esforço para forjar uma nação-Estado dos remanescentes do Império Otomano, eles resistiram. Desde meados da década de 1980, dezenas de milhares morreram nos dois lados. Esse deve ser hoje o mais longo conflito sangrento do mundo.
Em março, um filme turco, "Press" [Imprensa], estreou em Istambul, contando a tortura e a morte de dezenas de jornalistas que trabalhavam para o jornal "Ozgur Gundem", que ocupava o epicentro da luta curda. Mais de 75 de seus funcionários foram mortos entre 1992 e 1994, quando o jornal foi fechado pelo governo. Só recentemente, ele voltou a circular. Mas o diretor do filme, Sedat Yilmaz, 38, me disse que a polícia quis ter certeza de que ele usou exemplares falsos do jornal, e não os verdadeiros.
"Hoje, pelo menos, é possível conversar sobre as questões um pouco mais abertamente", disse Yilmaz. "A melhor maneira de fazer isso é através de filmes, peças de teatro e música, o que, finalmente, começa a acontecer."
Mas as mudanças ocorrem lentamente, quando ocorrem. As concessões do governo do premiê Recep Tayyip Erdogan em 2009 abriram espaço para a primeira estação de televisão nacional curda, e o governo também permitiu o ensino da língua curda em universidades privadas.
Gestos simbólicos, mas que foram manchetes de primeira página: primeiro porque foram sinais para o mundo exterior de que um Estado democrático dirigido por um líder islâmico não se tornaria automaticamente xenófobo ou tribalista e segundo porque até pequenos passos no sentido de reconhecer a cultura curda podem provocar incêndios políticos. Os nacionalistas turcos causaram uma comoção.
Os curdos da Turquia dizem que a maior liberdade cultural apenas incentiva sua lealdade pelo Estado turco.
"Na nossa estimativa, a assimilação é uma violação dos direitos humanos", disse Gulten Kisanak, a copresidente do Partido da Paz e Democracia, pró-curdo. Mas as recentes detenções de grande número de ativistas políticos curdos reforçaram as preocupações de que o governo nunca teve em mente a verdadeira democracia para eles, mas apenas manteve as aparências para consumo ocidental.
"As mudanças são importantes, mas ainda insuficientes", disse Burhan Senatalar, professor da Universidade Bilgi.
"Se você perguntasse aos turcos hoje, abstratamente, se as pessoas devem poder falar sua língua materna, a maioria diria 'É claro, não há problema'", explicou Senatalar. "Mas, com o curdo, o medo turva a imagem. A língua é a maior exigência curda porque a língua equivale à identidade. É a raiz de qualquer cultura, e muitos curdos que tiveram sua língua reprimida nem sequer sabem mais o básico da gramática. Por isso, o debate, inevitavelmente, passou para a língua. Para ter exigências culturais além da língua é preciso haver pessoas qualificadas para escrever peças e fazer arte, e, durante os anos 80, tantos curdos foram torturados que não tiveram tempo para pensar em cultura, o que significa que ainda temos um longo caminho a percorrer."
Hoje existem mais livros em língua curda nas livrarias daqui. Uma companhia de teatro encena produções em curdo em Diyarbakir. E a música curda, incluindo "dengbej", a tradicional canção falada curda, está por toda parte.
"Comparando com o passado, estamos melhor", disse Ciftci. "Oitenta por cento de nossa identidade como curdos está em nossa música. Se você é curdo, mesmo que não fale a língua, hoje pode ouvir uma canção, e sua alma se preenche. Isso o faz sentir-se parte de uma luta."


Texto Anterior: O sal possui mais do que um simples sabor salgado

Próximo Texto: Aperte 'imprimir' para explorar o universo 3D
Índice | Comunicar Erros



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.