São Paulo, segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

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SCOTT SHANE
ENSAIO


O destino dos segredos na era do WikiLeaks

WASHINGTON - O governo americano ainda consegue guardar um segredo? Na era do WikiLeaks, de pen drives e postagens instantâneas na web, os vazamentos começam a parecer inevitáveis.
Pode ser uma primeira impressão. Autoridades agora mais sóbrias estão lutando para conter a hemorragia de documentos, enquanto radicais antissigilo descobrem que talvez seja melhor a proteção de alguns segredos, afinal.
Mas houve uma mudança. O jornalismo tradicional, que há muito tempo aceita informações vazadas aos poucos, foi invadido por uma nova contracultura do vigilantismo na informação que promete revelações aos terabytes.
Isso explica como, nas três grandes remessas de documentos do WikiLeaks desde julho, os vazamentos gota a gota habituais se transformaram em uma torrente. Tudo isso, disfarçado como um CD de Lady Gaga, foi retirado de um escritório da inteligência do Exército, segundo os promotores, pelo soldado americano Bradley Manning, hoje preso e acusado pelo vazamento.
Duas décadas atrás, no tempo dos kilobytes e discos flexíveis, esse oceano de dados teria sido muito mais difícil de capturar e carregar. Quatro décadas atrás, usando uma fotocopiadora, um vazador teria precisado de muitas resmas de papel e de uma pequena carregadeira.
"Acho que é verdade que hoje é muito mais difícil manter em segredo os grandes contornos da política nacional e internacional", disse Steven Aftergood, diretor do Projeto sobre Sigilo do Governo na Federação de Cientistas Americanos, uma organização em Washington que promove a transparência no governo. "Não seria possível conduzir uma guerra secreta no Camboja, como aconteceu no governo Nixon."
De fato, horas depois dos ataques de mísseis americanos no Iêmen contra supostos campos da Al Qaeda, em dezembro passado, um vídeo amador da destruição estava no YouTube. Os vídeos rotularam os ataques como "americanos". Os ataques não haviam sido publicamente reconhecidos pelo Departamento de Defesa.
Considere a velocidade com que as notícias viajam. Durante o caso Irã-Contras, as vendas de armas americanas para o Irã foram relatadas primeiramente por um semanário de Beirute, "Al Shiraa", em novembro de 1986; passaram-se dias antes que a imprensa americana desse a notícia. "Hoje, isso levaria alguns minutos", disse Aftergood.
Um avanço inesperado no governo Obama se deu com quatro processos contra funcionários públicos acusados de revelar informações secretas -um número maior do que sob qualquer presidente anterior.
Esse é um motivo para suspeitar de que a abertura nesta nova era terá limites. Possíveis vazadores podem supostamente ser dissuadidos; eles podem ser manobrados no jogo de gato e rato tecnológico; podem aprender autocontenção. E existem sinais de que tudo isso pode estar acontecendo.
Thomas S. Blanton, diretor do Arquivo de Segurança Nacional na Universidade George Washington, em Washington, que obtém e publica documentos desclassificados do governo, disse que o WikiLeaks "tentou criar um lugar seguro para revelações. Mas, com Bradley Manning atrás das grades, quem vai seguir seu exemplo?".
Hoje, com a terceira coletânea do WikiLeaks ligada ao soldado Manning no noticiário, membros do Congresso americano pediram com mais ferocidade punição para o grupo e seu provocador-chefe, Julian Assange, um australiano de 39 anos que conseguiu a liberdade provisória na Grã-Bretanha sob acusações de crimes sexuais na Suécia. Ele será monitorado pela polícia e não poderá viajar para o exterior.
O governo Obama está decidido a preservar seus segredos.
O Departamento da Defesa reescalona a transmissão de informações, que seus líderes acreditam que foi longe demais depois que o acúmulo de informação foi acusado pelo fracasso em detectar o complô do 11 de Setembro.
O departamento também removeu os gravadores de CDs e DVDs de seus computadores; está redesenhando os sistemas de segurança para exigir duas pessoas, e não apenas uma, para movimentar grande quantidade de informações de um computador classificado para um não classificado; e está instalando software para detectar downloads muito grandes.
Mas enquanto o governo tenta conter o WikiLeaks, este também está se contendo. Os telegramas diplomáticos confidenciais que revelou inquestionavelmente puseram de ponta-cabeça o discreto mundo da diplomacia. Mas as revelações foram mais modestas do que poderia sugerir a autoproclamada dedicação do WikiLeaks à transparência.
Se tivesse desejado, o WikiLeaks poderia ter publicado na web todos os 251.287 telegramas diplomáticos confidenciais há cerca de seis meses, quando o grupo os obteve. Mas os compartilhou com organizações noticiosas tradicionais. Até agora, menos de 1% dos telegramas tinham sido divulgados na web pelo grupo antissigilo, pelo "Times" e por mais quatro publicações europeias.
"Eles realmente adotaram" a mídia da corrente dominante, "que costumavam tratar como um palavrão", disse Blanton. "Estou vendo o WikiLeaks crescer. O que eles fizeram com esses documentos diplomáticos até agora foi muito responsável."
Quando os jornais editaram os telegramas para proteger as fontes diplomáticas, o WikiLeaks, geralmente, tomou o cuidado de os acompanhar. Seus voluntários, hoje, aceitam que nem todos os segredos governamentais são ilegítimos; por exemplo, revelar as identidades de dissidentes chineses, jornalistas russos ou ativistas iranianos que haviam falado com diplomatas americanos poderia submetê-los à prisão.
Mas o WikiLeaks não aderiu exatamente às fileiras da imprensa tradicional.
Assange criou o que ele chama de plano de "seguro". O grupo colocou na web arquivos codificados contendo uma enorme quantidade de documentos ainda não divulgados. Milhares de pessoas baixaram esses arquivos.
Se os EUA passarem a processá-lo, disse Assange, o grupo lançará a senha criptografada, na verdade divulgando dezenas de milhares de telegramas não editados -e quem sabe que outros segredos perigosos.
É uma ameaça do século 21, e que o governo Obama está levando muito a sério.


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