São Paulo, segunda-feira, 21 de março de 2011

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INTELIGÊNCIA/LINA ATTALAH

Uma democracia fast-food

Fiquei agradavelmente surpresa recentemente ao ouvir um grupo de homens em um quiosque de cigarros discutindo a respeito do referendo constitucional de 19 de março. Antes do início dos protestos, em 25 de janeiro, quase nunca se discutia política em público, uma situação cuidadosamente engendrada pela ditadura patriarcal que governava o país desde 1982. Mas, graças à bravura de uma cidadania ressurgida, os egípcios retomaram seu futuro político, e o debate nas ruas não pode ser ignorado. A rua é o berço da revolução e a garantidora do seu futuro.
Embora o Conselho Supremo das Forças Armadas, que está conduzindo o Egito durante sua transição, demonstre sinais de apoio às exigências do movimento pela democracia, há uma ala conservadora que fala na volta à "estabilidade".
Esse caminho poderia comprometer os objetivos dos egípcios que enfrentaram policiais, atiradores de elite e marginais a cavalo na praça Tahrir e em outros lugares a fim de forçar Hosni Mubarak a abandonar o poder. Não perseguir a meta de um novo Egito, que honre os direitos humanos e um futuro democrático, seria trair as vozes que exigiram mudança nas ruas.
Para o Conselho Supremo, o mapa para a democracia é simplesmente uma série de emendas constitucionais que abram o processo eleitoral. Após o referendo de sábado, as eleições parlamentares e presidenciais estão previstas para dentro de seis meses. A rapidez dessa transição cria o risco de que as eleições se reduzam a meros gestos.
Uma amiga minha descreveu isso como "democracia fast-food que provoca indigestão". Como muita gente que passou longas noites na praça Tahrir em busca de uma mudança radical, ela descreve as eleições como a cereja no bolo.
O clima nas ruas ecoa aquilo que Mohamed ElBaradei, líder pró-democracia e acérrimo opositor do regime derrubado, disse, numa pequena reunião em sua casa, no início de março: "Não se desfaz em seis meses uma ditadura de 30 anos".
Para ElBaradei, que é candidato a presidente, e, para muitos outros, há uma lista de prioridades que precisam ser resolvidas antes das eleições: a instituição de partidos representativos; a formação de plataformas políticas que representem a vontade do povo; a reconstrução de instituições do Estado, como a polícia e os meios de comunicação; e, acima de tudo, a redação de uma nova Constituição.
Em um recente debate sobre o mapa para a democracia, dois jovens ativistas confrontaram dois políticos mais velhos que representam blocos convencionais pré-revolucionários, a Irmandade Muçulmana e o liberal Partido Wafd. Pedindo um adiamento na votação, os dois ativistas juraram veementemente que sua revolução não seria sequestrada pelos políticos tradicionais. Muitos no movimento revolucionário sentem que precisam de tempo para articular uma plataforma política de modo a poderem concorrer nas próximas eleições. Seu maior medo é que, embora tenham criado o clima para a mudança, outros partidos acabem se beneficiando, por não terem as forças revolucionárias construído um verdadeiro movimento político.
No passado, o regime deposto usou a Irmandade Muçulmana como um espantalho. A mentalidade do "nós ou eles" desestimulava a democracia. Os que lotaram a praça Tahrir, uma mistura de liberais, esquerdistas, ativistas islâmicos, sindicalistas, cristãos coptas e outros, já não têm mais medo da democracia.
As ruas têm mostrado aos egípcios que existem outras possibilidades além da autocracia e do regime islâmico, e que democracia liberal e justiça social são objetivos legítimos; que a corrupção e o clientelismo não são o destino do povo egípcio.
Mas é necessário algum tempo antes da votação para que esses projetos nacionais se cristalizem em termos de sua identidade política e da sua base de apoio popular.
Nossa revolução tem metas idealistas. Muitos de nós preferiríamos ver nesse ínterim uma assembleia nacional cuja função seria a de preservar a legitimidade da revolução, defender seus princípios, trabalhar por seus objetivos, elaborar uma nova Constituição com base no diálogo nacional e usar a rua como referência. Depois disso, estaríamos prontos para eleições de verdade.
A boa notícia é que as pessoas pretendiam votar no sábado. Nos últimos 30 anos, alguns egípcios gritavam, cantavam e repetiram "sim" como papagaios a Mubarak, com medo da sua ditadura opressora.
Agora, eu vejo meu Facebook inundado por amigos declarando sua intenção de votar "laa" ("não", em árabe).
Qualquer que seja o resultado do referendo, a voz da rua não vai sumir.

Lina Attalah é editora-executiva da edição em inglês do "Al Masry Al Youm" no Cairo. Escreva para intelligence@nytimes.com



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