São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2010

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Em exposição em NY, Rafael Ferrer retorna aos trópicos e à pintura


A retrospectiva de um artista de constante inquietação

ROBERTA SMITH
CRÍTICA DE ARTE

Graças ao Museo del Barrio, em Nova York, o artista Rafael Ferrer finalmente está tendo seu momento merecido, aos 77 anos de idade. "Retro/Active", sua primeira grande retrospectiva montada por um museu, abrange mais de cinco décadas e inclui quase 200 trabalhos em praticamente todas as mídias do final do século 20, excetuando o cinema e o vídeo.
A mostra possui uma atração imediata que se deve à facilidade instintiva de Ferrer com cores e materiais de todos os tipos. A impressão é de que é alguém que encontraria uma forma de criar arte mesmo que estivesse confinado em um ambiente quase vazio.
Cuias aparecem em várias esculturas. Sacos de papel -uma das superfícies de desenho preferidas do artista, há décadas- ocasionaram uma exploração do rosto humano como máscara que é quase enciclopédica em suas alusões culturais e emocionais.
Pequenas lousas emolduradas fornecem uma superfície ideal para uma série de pinturas claro-escuras de 2005 e 2006. No El Museo del Barrio, enormes agrupamentos desses trabalhos ficam frente a frente, criando um efeito eletrizante.
Com tudo isso, é estranho que Ferrer, até agora, tenha sido conhecido principalmente pelas efêmeras e temporárias instalações que criou nos anos 1960 e 70 e que expôs ao lado de trabalhos de artistas como Alan Saret, Richard Serra e Robert Morris. Essas obras às vezes eram feitas de materiais tão transitórios quanto gordura, palha, folhas secas e gelo. Elas fizeram suas contribuições para a desmaterialização do objeto de arte, e, depois disso, Ferrer passou para outras coisas.
Nos anos 1970, Ferrer passou a rematerializar sua arte, trabalhando com uma sucessão de mídias, entre elas montagens que ficam penduradas do teto. Especialmente boa é "Marvelous Woman", que lembra uma marionete; o rosto é pintado sobre uma lata de lixo achatada, e os pés são um par de bombas manchadas de tinta.
A obra parece diretamente saída do dadaísmo, mas de uma maneira inovadora. De modo condizente com o passado musical de Ferrer (que foi baterista de jazz), um de seus primeiros trabalhos de óleo sobre tela é o alegremente tóxico "Quartet", de 1980, que mostra músicos latinos no meio de uma canção.
No final dos anos 1980, Ferrer estava criando os trabalhos que talvez sejam seus mais contundentes: pinturas visual e emocionalmente carregadas retratando cenas radiantes e cheias de sombras de moradias tropicais improvisadas e seus moradores.
Essas pinturas atualizam o falso primitivismo calculado do modernismo, dotando-o de uma angularidade vagamente fotográfica. Imagem e pintura formam um conluio bizarro, e o jogo de luz e sombra pode ser quase alucinatório.
"Retro/Active" foi montada cuidadosamente por Deborah Cullen, diretora de programas curatoriais do El Museo.
O título telegrafa o pendor de inconformismo de Ferrer, somado a um toque de tendenciosidade, sem falar em sua agitação constante.
O subtexto é que ele vem trabalhando continuamente e ainda o está fazendo, mesmo que nossa atenção tenha estado focada em outros lugares. E também o fato de que o passado está sempre disponível: basta olhar para trás de modo ativo, com curiosidade.
Qual foi o pecado de Ferrer? Possivelmente sua personalidade, às vezes arredia, ou seu passado de "outsider" privilegiado.
Ele nasceu em Porto Rico em 1933, filho de uma família que tinha condições econômicas para educar seus filhos nos EUA. Passou seu primeiro verão universitário em Hollywood, com seu meio-irmão muito mais velho, o ator José Ferrer, e a cunhada, a atriz e cantora dos anos 1950 Rosemary Clooney; no segundo verão, conheceu André Breton e Wilfredo Lam em Paris.
Durante anos, Rafael Ferrer dividiu seu tempo entre Filadélfia, onde lecionou, e seus ateliês residenciais de férias em Porto Rico e na República Dominicana. Quando se aproximou de suas raízes caribenhas, o fez sem subir no bonde da "arte identitária".
O trabalho de Ferrer, conforme visto nesta retrospectiva, revela um artista que trabalha a partir de seu eu complexo, imperfeito e motivado -um eu que é uma esponja cultural, um coador oportunista e um sintetizador fortemente enrolado.
Ferrer não é um paradigma de originalidade que mudou a história da arte, mas é algo quase tão bom quanto isso e que, em última análise, pode ser mais inspirador: um artista movido por curiosidade, paixão e instinto que vem trabalhando sem parar há mais de meio século.
Sua arte é um retrato de eficiência que não poderia ter sido feito por qualquer outra pessoa. Não é pouca coisa como realização.


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