São Paulo, segunda-feira, 21 de junho de 2010

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Literatura une censor e censurado na África do Sul

Por ALAN COWELL

PARIS - Quando os regimes totalitários sucumbem, às vezes deixam, sem querer, pistas documentais que revelam o sombrio ofício da opressão.
Após a queda do Muro de Berlim, em 1989, para citar um só exemplo, muitos alemães descobriram nos arquivos que filhos ou cônjuges os haviam espionado para a Stasi (polícia secreta da Alemanha Oriental). E, na Romênia, o economista Doru Pavaloiae soube que um amigo, cantor popular em sua cidade, era informante -codinome: Menestrel- da temida Securitate.
Tais epifanias dificilmente seriam possíveis se os regimes não fossem tomados por uma obsessão por acumular dados sobre seus cidadãos.
Assim foi com o Nobel sul-africano de Literatura J.M. Coetzee, como ouviu recentemente uma plateia na Universidade Americana de Paris, quando ele contou suas experiências a alunos, professores e a pelo menos um ícone americano -o poeta Lawrence Ferlinghetti, 91, que por coincidência também estava na cidade.
"Até quando eu tinha 50 anos de idade, meus livros só podiam ser lidos por meus compatriotas sul-africanos depois de terem sido aprovados por um comitê de censores", disse Coetzee, 70.
Mas só por volta de 2008 um pesquisador acadêmico se ofereceu para mostrar a ele arquivos que havia descoberto, relativos a três obras do escritor na década de 1970 e começo da de 1980.
Na época, o apartheid dominava o país, prescrevendo onde as pessoas podiam viver e trabalhar, onde nasciam e morriam, como viajar, a quem amar; a chamada Lei da Imoralidade criminalizava a miscigenação. Mas um arquivo, relativo a "No Coração Desta Terra" (1977), aparentemente conseguiu burlar tais restrições pseudomorais, argumentando que "embora sexo através dos limites de cor seja descrito", o livro "será lido e desfrutado apenas por intelectuais".
Em "À Espera dos Bárbaros" (1980), concluía outro censor, 22 trechos poderiam ser considerados indesejáveis, mas o conteúdo sexual do livro "não provoca a luxúria". Um terceiro censor opinava que "Vida e Época de Michael K." (1983) "contém referências e comentários depreciativos sobre as atitudes do Estado, e também à polícia e aos métodos que eles empregam no cumprimento de seus deveres".
Invariavelmente, os censores se opuseram à proibição.
De certa forma, era o mesmo tipo de vigilância ambígua mostrada no filme alemão "A Vida dos Outros", em que um agente com fones de ouvido passa a se solidarizar com as vítimas de escutas secretas.
Esses censores sul-africanos eram acadêmicos -colegas, suspeitava Coetzee, que em casa ouviam Mozart enquanto liam Austen e Trollope, e que acreditavam estar "fazendo um bom trabalho".
Uma leitora secreta, lembra-se Coetzee, convidou-o para um chá, e os dois mantiveram "uma longa discussão" sobre literatura. "Eu não tinha a menor ideia de que ela era uma dos meus censores."
Na época, Coetzee era professor de literatura inglesa na Cidade do Cabo.
"A comunidade intelectual não era grande", disse ele. "Permanece o fato de que eu estava ombro a ombro na vida cotidiana com pessoas que em segredo estavam fazendo julgamentos sobre se eu poderia ou não ser publicado e lido na África do Sul."
É claro que nem tudo na África do Sul do apartheid se reduzia a mocinho e bandido, bom e mau, preto e branco.
Os dirigentes do apartheid ansiavam por serem vistos como parte de uma remota sociedade ocidental, e não de um continente que eles descreviam como cruel e bárbaro. Se um censor notasse que uma obra seria lida só por "intelectuais", aparentemente havia a suposição de que essa gente não iria querer derrubar o Estado.
Os leitores secretos, disse Coetzee, se viam como "um certo tipo de herói anônimo". "Os censores que liam os meus livros viam a si mesmos como guardiões da República das Letras também", disse Coetzee à plateia. "Aos seus olhos, eles estavam do meu lado."


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