São Paulo, segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

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Fantasmas da tragédia

Drama haitiano assombra os que prestaram socorro

Lynsey Addario para o New York Times
Criança vítima de desnutrição em um orfanato de porto príncipe; mãe morreu em consequência do terremoto de 12 de janeiro

Por DEBORAH SONTAG
Porto Príncipe, Haiti

Os médicos estrangeiros usavam serrotes nas primeiras amputações após o terremoto no Haiti. Recorriam à vodca para esterilizar, substituíam a anestesia geral por um adormecimento localizado, inventavam torniquetes com luvas de borracha.
Trabalhando em tempo integral em salas de cirurgia improvisadas, eles sacrificaram membros e perderam pacientes por causa de ferimentos que não deveriam mais mutilar nem matar.
Agora, de volta a seus consultórios antissépticos e tecnológicos nos EUA e em outros países, os profissionais que participaram do resgate inicial no Haiti vivem assombrados por suas experiências, "tomados por sentimentos conflitantes de dever cumprido e culpa", como descreveu o médico Louisdon Pierre.
Eles testemunharam aquilo que Laurence Ronan, do Hospital Geral de Massachusetts, qualificou como "um show de horror de vítimas em massa". Praticaram o que Dean Lorich, do Hospital para a Cirurgia Especial de Manhattan, chamou de "medicina da [época da] Guerra Civil". Salvaram vidas, provavelmente milhares.
Mas seus feitos foram limitados pelas circunstâncias, e depois eles partiram, aflitos, antes que as condições começassem a melhorar.
A maioria dos profissionais ouvidos se disse comprometida a voltar ao Haiti e a angariar recursos para atender milhares de haitianos vítimas de lesões incapacitantes.
As necessidades são terríveis: de cuidados básicos e ferimentos a implantes cutâneos, cirurgias de revisão, reabilitação física e ocupacional, próteses e terapia pós-trauma.
"Tudo o que todos fizeram durante as duas dolorosas primeiras semanas terá sido à toa se esses pacientes não receberem cuidados continuados", disse Elizabeth Bellino, pediatra de Nova Orleans que esteve no Haiti logo depois do terremoto.
Atualmente trabalhando num projeto em Uganda, Bellino, 34, afirmou que fecha os olhos e vê o rosto radiante do haitiano Mystil Jean Wesmer, 12, que acabou reconfortando-a quando ela se dissolveu em lágrimas.
Mystil, contou a médica, sorriu suavemente e, sentindo que ela estava sobrecarregada por tantas demandas naquele hospital de campanha mantido por americanos, disse a ela: "Vai tomar conta das crianças mais doentes; eu vou ficar bem". O menino esperava para ter sua perna amputada.
"Tudo o que ele queria saber é como iria andar até a escola e a igreja", disse Bellino. "Eu disse: 'Bom, nós vamos ver isso'. Mas agora estou muito preocupada com ele, com toda a garotada."
Pierre, um haitiano-americano que dirige a UTI pediátrica do Centro Hospitalar do Brooklyn, disse que também pensa constantemente nos pacientes que deixou para trás. Enquanto planeja a próxima viagem -ele e Stephen Carryl, chefe de cirurgia do seu hospital, voltarão ao Haiti com um protético-, algumas lembranças o perseguem.
De volta ao Brooklyn, ele ainda ouve o choro alto e agudo de uma mãe no momento em que seu filho morreu por causa de uma infecção, no gramado de um hospital. A mãe e o pai, que já tinham perdido outro filho no terremoto, haviam implorado a Pierre que ajudasse o menino de quatro anos, eviscerado por um bloco de concreto e suturado às pressas por um médico local.
Mas o menino, deitado em um cercado sob uma árvore, tinha taquicardia, respirava rápido demais e claramente sofria um choque séptico. Pierre, equipado apenas com seu estetoscópio, nada podia fazer.
"Eu me senti impotente demais", disse. Não muito depois, quando sedava outro paciente para uma cirurgia, ele ouviu os lamentos que indicavam a morte do menino. Mais tarde, em meio aos pacientes espalhados pelo terreno do hospital, Pierre viu um embrulho no que parecia ser uma incubadora abandonada.
O embrulho, choramingando, era um bebê prematuro, cuja mãe havia morrido no parto. Pierre e uma enfermeira buscaram freneticamente uma forma de hidratar o bebê. "Isso é algo que sabemos fazer", disseram um ao outro, segundo o relato dele.
Finalmente, conseguiram inserir uma agulha numa cavidade óssea e administraram alguns fluidos à criança. Mas, na manhã seguinte, Pierre encontrou a incubadora vazia. Tais perdas foram arrasadoras, mas era difícil reagir na hora, segundo os médicos.
Havia muito a fazer, e as circunstâncias eram desorientadoras. Lorich, cirurgião do Hospital para a Cirurgia Especial, disse que era duro se adaptar à sombria realidade das amputações em massa. "Meu hábito é o de salvar pernas", afirmou.
Em Uganda, a três semanas da sua volta ao Haiti, Bellino disse que não consegue parar de se perguntar como Mystil tem se virado após a amputação. Por intermédio de um tio, o menino foi achado num orfanato.
Mystil estava deitado em um colchão no chão de concreto de uma igreja cujo teto fora danificado no terremoto. Na sua camisa ele usava um adesivo do Bob Esponja, que um voluntário disse que ele ganhou dando várias voltas em torno de uma mangueira com suas novas muletas. Sarah Wimmer, paramédica do Arizona, disse que o ferimento de Mystil evolui bem e que ele tem feito terapia física e emocional.
Quando os seus pontos forem tirados, ele ficará com seus pais e será considerado um paciente ambulatorial. Na África, Bellino suspirou. "Agora posso respirar", disse.


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