São Paulo, segunda-feira, 22 de março de 2010

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Cantor haitiano busca sua voz em meio à desolação

Por SIMON ROMERO
PORTO PRÍNCIPE, Haiti - Seu maço de cigarros estava quase vazio. Os cheiros de lixo em decomposição na rua enchiam o ar da praça St. Pierre. Algumas crianças olharam sua muleta e silenciaram. Beken, um dos músicos mais talentosos do Haiti, exalou um véu de fumaça. "Eu deveria estar em Miami, vivendo dos lucros dos meus discos", disse Beken, 54, que nasceu em Porto Príncipe com o nome Jean-Prosper Deauphin, antes de adotar seu nome artístico. "Em vez disso, estou aqui, vivendo na imundície."
O Haiti possui uma riqueza musical espantosa, com músicos que são mais famosos e bem-sucedidos que Beken, incluindo o grupo de hip-hop de Porto Príncipe Barikad Crew e o cantor de protesto Manno Charlemagne, que hoje vive nos EUA. Mas poucos compositores ocupam um espaço como o de Beken, cujas canções de desespero e redenção encontram eco forte entre os haitianos em tempos de tragédia.
Nas ruas de Porto Príncipe, camelôs vendem por US$ 1,30 cada coleção pirateada de suas canções, incluindo "Tribilasyon" (Atribulação) e "Mizè" (Miséria). Os CDs são acompanhados de fotos duras de Beken, que perdeu a perna direita em um acidente de carro, aos 12 anos de idade. Ele canta na tradição dos trovadores haitianos, tocando violão e buscando sempre o contato estreito com a plateia em canções de lamento, de humor e, ocasionalmente, políticas.
"A música de Beken geralmente vendia mais após um furacão", disse Jonas Gaspard, 25, que vendia álbuns piratas em uma rua próxima ao palácio presidencial. "Mas a demanda nunca foi tão grande quanto desde o terremoto [de 12 de janeiro]. As pessoas adoram o jeito como ele canta o sofrimento."
Beken sabe algumas coisas sobre as provações da vida. Depois de tornar-se deficiente físico, ele passou a destacar-se como compositor. Chegou a fazer algum sucesso nos anos 1980, mas então decisões equivocadas envolvendo dinheiro o levaram à penúria.
Então veio o terremoto. Sua casa foi destruída, e Beken, sua mulher e seus três filhos foram forçados a se mudar para um dos acampamentos mais esquálidos da cidade, em Pétionville.
"A única coisa que posso fazer é tocar, mas não toco meu violão desde 12 de janeiro", disse. "Acho que não tenho forças para compor neste momento."
Mas, numa noite recente, Beken levou seu violão a um pequeno café em Pétionville.
Ele aparentava surpresa e algo que se aproximava de alegria enquanto tocava naquela noite. Depois, retornou a sua tenda, em meio ao mau cheiro da praça St. Pierre, agarrando seu violão. "Voltei a cantar", disse. "Talvez isso queira dizer que vou conseguir compor uma canção nova."


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