São Paulo, segunda-feira, 22 de novembro de 2010

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Quem reclama vai para o hospital

Por SHARON LaFRANIERE e DAN LEVIN
LOUHE, China - Xu Lindong, um agricultor pobre, estudou só até a quarta série e, durante décadas, soube apenas o que era labutar de sol a sol. Mesmo com 50 anos, os feixes de músculos nos seus braços prestavam um testemunho da sua vida de trabalho duro na província de Henan.
Mas, após passar quatro anos trancafiado no Hospital Psiquiátrico de Zhumadian, seus irmãos mal o reconheceram. Emaciado, descalço, metido num esfarrapado pijama listrado, Xu falava de um jeito hesitante. Seu rosto estava marcado pela exaustão.
O confinamento dele numa ala para pacientes mentais, diz seu irmão mais velho, Xu Linfu, é ainda mais notável por causa de um fato extraordinário: ele não estava perturbado. Irritado com uma disputa de terras, havia apresentado queixas contra o governo. A reação do governo foi redigir uma ordem para interná-lo num hospital mental -e falsificar o nome do irmão dele na assinatura.
Xu Lindong foi solto em abril, após seis anos e meio em duas instituições psiquiátricas. Ele relatou ter passado por 54 tratamentos com choques elétricos e que, rotineiramente, recebia injeções de drogas que o faziam desmaiar.
O drama de Xu Lindong exemplifica problemas mais amplos no sistema psiquiátrico chinês: uma lacuna na proteção jurídica contra abusos psiquiátricos, uma ética médica com padrões instáveis, psiquiatras mal treinados e administradores hospitalares que aceitam qualquer um -doente mental ou não- que chegue escoltado por um funcionário público.

Distúrbio social
Ninguém sabe com que frequência casos como o de Xu ocorrem. Mas ativistas dos direitos humanos afirmam que os confinamentos em manicômios parecem estar aumentando, pois as autoridades locais estão sob intensa pressão para conter distúrbios sociais, mas têm menos liberdade do que no passado para prender quem for visto como desordeiro.
"A polícia sabe que deter alguém arbitrariamente é ilegal e precisa se preocupar com isso agora", disse Huang Xuetao, advogada de Shenzhen especializada em direito da saúde mental. "Mas as autoridades descobriram esse grande buraco no sistema psiquiátrico e estão cada vez mais se aproveitando dele."
O pior, segundo Huang, é que o governo desperdiça os magros recursos da saúde ao confinar queixosos inofensivos, negligenciando quem realmente precisa de ajuda.
Liu Feiyue, fundador do Observatório dos Direitos Civis e da Subsistência, uma organização chinesa de direitos humanos, disse que seu grupo compilou um banco de dados com mais de 200 cidadãos erroneamente internados em manicômios na última década depois de terem apresentado queixas -chamadas na China de "petições" contra o governo.
A China não revela mais quantos "peticionários" buscam reparações, mas o governo estimou em 2004 que mais de 10 milhões de pessoas por ano faziam petições por escrito ou pessoalmente. Só 0,2% das queixas são resolvidas, segundo pesquisa citada num estudo deste ano da Universidade Tsinghua, de Pequim.

Classificados como loucos
Os peticionários mais insistentes com frequência são classificados como loucos. Em uma entrevista no ano passado, Sun Dongdong, chefe de psiquiatria forense da Universidade de Pequim, disse: "Não tenho dúvida de que pelo menos 99% dos 'peticionários profissionais' da China, teimosos e persistentes, são mentalmente doentes". Ele, depois, se desculpou pela frase.
O banco de dados de Liu sugere que os peticionários são as vítimas mais frequentes dos abusos psiquiátricos.
Wu Yuzhu, administrador hospitalar na província oriental de Shandong, disse em 2008 que as autoridades locais lhe haviam enviado muitos peticionários obviamente sãos.
Ele os internou, contou, pois agentes da segurança pública os acompanhavam, e seus funcionários se sentiam impotentes para contestar os diagnósticos de psiquiatras contratados pelo governo. Ele acrescentou que seu hospital, o Centro de Saúde Mental de Xintai, estava sem dinheiro e, por isso, recebeu de bom grado os pacientes subsidiados pelo governo.
Na verdade, os funcionários de hospitais, muitas vezes, citam as petições como a única razão para o confinamento de um paciente.
Só seis cidades chinesas têm uma lei municipal relativa à saúde mental. "Não há como os pacientes internados para tratamento se queixarem, recorrerem ou processarem", diz um relatório sobre o tema escrito pela advogada Huang.

Pesadelo de peticionário
As agruras de Xu Lindong começaram quando ele tentou ajudar sua vizinha analfabeta, Zhang Guizhi, a reivindicar uma faixa de terreno ao lado da sua casa. Zhang, que é deficiente física, alegava que as autoridades haviam dado equivocadamente a sua propriedade a um vizinho rico.
Após perder essa ação judicial, Zhang e Xu começaram a arrastar de repartição em repartição uma caixa de papelão cheia de documentos. Em setembro de 2003, disse Xu, ele foi recolhido por agentes da segurança pública em Pequim. Em vez de ser levado para casa, foi conduzido ao hospital psiquiátrico.


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