São Paulo, segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Texto Anterior | Índice

"Inferno" nos primórdios da Terra pode ter sido mais curto

Por KENNETH CHANG

Os primeiros 700 milhões dos 4,5 bilhões de anos de existência da Terra são conhecidos como período Hadeano, alusivo a Hades, o nome do inferno na Grécia antiga.
Tal nome parece se adequar à idéia corrente de que a Terra, quando jovem, era uma paisagem seca, quente e desolada, interrompida por mares de magma e incapaz de abrigar vida. Mesmo que alguns organismos conseguissem surgir, dizia a velha história, certamente seriam extintos pela tempestade de fogo dos meteoritos gigantes que se chocavam contra a Terra, quando o recém-formado Sistema Solar ainda estava cheio de detritos.
Cicatrizes na superfície da lua registram a chuva de impactos durante o chamado bombardeio pesado tardio. A Terra teria recebido um bombardeio ainda mais intenso, e o lugar-comum até recentemente era de que a vida não poderia ter aparecido durante esse bombardeio, que arrefeceu há cerca de 3,85 bilhões de anos.
Norman Sleep, professor de geofísica da Universidade Stanford, lembrou que em 1986 ele apresentou um estudo que calculava a probabilidade de a vida sobreviver a um daqueles impactos primitivos. O estudo foi sumariamente rejeitado porque o examinador alegou que obviamente nada continuaria vivo. Isso já não é mais considerado verdade.
"Achávamos que sabíamos algo que não sabíamos", disse T. Mark Harrison, professor de geoquímica na Universidade da Califórnia em Los Angeles.
Nos últimos anos, análises mineralógicas de pequenos cristais conhecidos como zircões, incrustados em antigas rochas australianas, traçam um painel do período Hadeano que é "completamente inconsistente com esse mito que criamos", segundo Harrison.
Geólogos agora são quase unânimes em dizer que, há 4,2 bilhões de anos, a Terra já era um lugar bastante plácido, com seus continentes e oceanos. Em vez de infernalmente quente, poderia estar congelada.
Em uma nova análise, publicada numa recente edição da revista "Nature", os zircões, únicos pedaços da Terra supostamente com mais de 4 bilhões de anos, fornecem outra pista atraente sobre o período Hadeano.
Harrison e dois colegas da UCLA relataram que os minerais retidos dentro dos zircões comprovam que o processo das placas tectônicas -as forças que movimentam a crosta exterior do planeta, moldando os continentes- já havia começado.
"O quadro que está surgindo é o de um mundo aguado, com processos normais de reciclagem de rochas", disse Stephen Mojzsis, professor de geologia da Universidade do Colorado, que não participou da pesquisa da UCLA. "E isso é um pensamento reconfortante para a origem da vida."
A revolução nos estudos sobre os primórdios da Terra vem em grande parte de rochas do oeste da Austrália. As rochas têm 3 bilhões de anos, mas contêm zircões ainda mais velhos. Os zircões, feitos primariamente dos elementos zircônio, oxigênio e silício, são extremamente sólidos e duráveis, capazes de sobreviver a erosões, derretimentos e outras transformações que afetam rochas ao seu redor.
Pelos cálculos de Sleep, durante os 700 milhões de anos do Hadeano, cerca de 15 objetos com pelo menos 160 quilômetros de diâmetro atingiram a Terra. Provavelmente quatro deles tinham mais de 320 quilômetros, e tais colisões teriam sido suficientes para fazer os oceanos ferverem. (Já o objeto que atingiu a Terra 65 milhões de anos atrás e ajudou a matar os dinossauros tinha apenas cerca de 10 quilômetros de diâmetro.)
Mesmo assim, em simulações numéricas apresentadas neste mês numa reunião da União Geofísica Americana, em San Francisco, Mojzsis demonstrou que os impactos do bombardeio pesado tardio não foram tão letais quanto se pensava.
"As coisas se machucaram bem", disse Mojzsis. Mas os cálculos dos computadores indicaram que mesmo meteoritos com até 482 quilômetros de diâmetro não matariam tudo, e que existiriam bolsões onde poderiam sobreviver organismos que prosperam em altas temperaturas, como fendas hidrotermais.
Mojzsis disse que o termo Hadeano pode afinal não ser inadequado para a primeira fase da história da Terra. O antigo conceito grego de inferno não era o de um lugar de fogo e enxofre. "Na mitologia grega, o Hades era um lugar escuro, frio e misterioso. Parece-me que o Hadeano está fazendo jus ao nome."


Texto Anterior: Ensaio: Aprendendo a valorizar o toque
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.