São Paulo, segunda-feira, 24 de agosto de 2009

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Michael Kimmelman
Ensaio


Cultura e preconceito colidem em Dresden

DRESDEN, Alemanha — No início de julho, milhares de pessoas enlutadas saíram às ruas do Egito entoando “abaixo a Alemanha”. Outros milhares de árabes e muçulmanos se uniram em protestos em Berlim. No Irã, o presidente Mahmoud Ahmadinejad reforçou a indignação, denunciando a “brutalidade” alemã.
A provocação foi o assassinato, em 1° de julho, em Dresden, de Marwa al Sherbini, uma farmacêutica egípcia grávida. Ela foi esfaqueada 18 vezes em um tribunal na frente de seu filho de três anos, de juízes e de testemunhas, supostamente pelo homem que apelava de uma multa por ter insultado Sherbini em um parque.
Identificado pelas autoridades apenas como um alemão nascido na Rússia chamado Alex W., de 28 anos, ele havia chamado Sherbini de radical islâmica, terrorista e prostituta, quando ela lhe pediu para dar espaço para seu filho nos balanços do playground. Sherbini usava um lenço na cabeça.
Mais de uma semana se passou antes que o governo alemão, reagindo à revolta em todo o mundo árabe, manifestasse condolências, enquanto salientava que o ataque ocorreu durante o julgamento de um racista e que o acusado era originário da Rússia.
Dresden é uma das grandes capitais culturais da Europa. Também é a capital da Saxônia, antiga parte da Alemanha Oriental que, juntamente com a reputação pela indústria de semicondutores, ganhou manchetes nos últimos anos por incidentes de xenofobia e extremismo de direita. É difícil imaginar como reconciliar a elevada cultura da cidade com esses eventos perturbadores.
O relatório deste ano do Departamento Federal de Proteção à Constituição, agência de inteligência interna da Alemanha, mostrou que os crimes da extrema direita aumentaram 16% em todo país em 2008. A maioria dessas ofensas foi classificada como crimes de propaganda —pintura de suásticas em túmulos judeus ou ataque a estabelecimentos de propriedade de imigrantes—, mas atos violentos com motivo político, como assassinato, incêndio e agressão, representaram 1.042 dos quase 20 mil crimes registrados, aumento de 6,3% em relação a 2007.
E esses crimes violentos se revelaram muito mais comuns em partes da antiga Alemanha Oriental. A Saxônia, com aproximadamente 5% da população do país, respondeu por 12% da violência classificada como de natureza de extrema direita, disse o relatório.
Hoje, o centro de Dresden, que já foi destruído pelas bombas aliadas, é uma maravilha de civilidade, um ambiente da era barroca restaurado. A reconstrução da Frauenkirche, a grande catedral barroca onde Bach tocou, marca mais uma vez a silhueta da cidade com sua cúpula em forma de sino.
As ruínas da Frauenkirche tornaram-se um ponto de reunião para protestos contra o regime durante a época comunista. Em fevereiro, como sempre no aniversário dos ataques aéreos aliados, neonazistas marcharam pelas ruas. Cerca de 7.500 deles carregavam faixas condenando o “holocausto das bombas”. Eles foram superados, segundo o Spiegel Online, por manifestantes antinazistas, mas de qualquer modo 7.500 foi o dobro do número que se manifestou no ano passado.
A Alemanha é hoje um bastião da democracia no coração da Europa. Mas a extrema direita está em ascensão em todo o continente, e a xenofobia cresce no país, pelo menos entre os jovens.
O jornal “Tagesspiegel” relatou que Alex W. perguntou a Sherbini no tribunal: “Você tem o direito de estar na Alemanha?”, antes de adverti-la de que “quando o NDP chegar ao poder será o fim disso”.
“Eu votei no NDP”, ele acrescentou. Não foi surpresa. O Partido Democrático Nacional (NDP na sigla em alemão), de extrema direita, pediu que Zeca Schall, político negro que trabalha nas eleições regionais para a União Democrata Cristã, no governo, “voltasse para Angola”.
Tudo isso levanta o problema da reconciliação: quais são os efeitos humanizadores da cultura? Evidentemente, nenhum.
Podemos olhar o quanto quisermos para as muitas obras-primas de arte em Dresden, mas isso não dará sentido a um assassinato idiota ou ajudará a mudar a mente de um preconceituoso violento.
O que também podemos fazer, porém, é aceitar que, embora as artes não possam nos salvar, devemos salvá-las de qualquer modo. Porque os inimigos da sociedade civilizada estão sempre diante da porta.


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