São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2008

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

Por LYDIA POLGREEN

BISIÉ, Congo - Nenhuma estrada leva a Bisié. Esta cidade de 10 mil habitantes fica escondida ao final de uma trilha lamacenta de 50 km, que serpenteia pela densa floresta equatorial da República Democrática do Congo.
No início do caminho, um soldado robusto cobra meio dólar de cada transeunte. Na outra ponta, na base da montanha, uma multidão se aglomera no acesso a um garimpo. Carregadores exaustos esperam que militares inspecionem suas cargas e arrecadem outro tributo —normalmente, 10% do dinheiro e das mercadorias que entram.
Apesar do esforço para unir as muitas milícias do país sob um único Exército nacional, além dos bilhões de dólares gastos em missões internacionais de paz e na eleição de 2006, o governo não tem capacidade ou disposição para forçar esses soldados a deixarem a montanha, apesar de eles trajarem fardas oficiais e receberem salários do Estado.
Abençoada com abundância de minerais, água e terras férteis, esta vasta nação no coração da África praticamente só conheceu dominação e guerras desde sua fundação como colônia do rei belga Leopoldo 2°, no século 19.
As riquezas do Congo (ex-Zaire) têm papel de relevo no caos e nos conflitos que se desenrolaram na última década, matando até 5 milhões de pessoas, a maioria de fome e doenças. Um acordo de paz encerrou oficialmente a guerra em 2003, o país teve suas primeiras eleições democráticas em mais de quatro décadas, e em muitas áreas a vida vai lentamente voltando ao normal.
Mas aqui, no extremo leste do Congo, a guerra nunca acabou de verdade. No último capítulo, a luta entre o governo e o general rebelde Laurent Nkunda provocou a fuga de centenas de milhares de civis e deixou o país à beira de um novo conflito regional.
O faturamento de garimpos como este, junto com os impostos ilegais cobrados em estradas e fronteiras, ajuda a financiar praticamente todos os grupos armados na região.
Em Bisié, a milícia cobra uma taxa sobre qualquer empreendimento. Uma fonte congolesa de inteligência estimou que a milícia receba de US$ 300 mil a US$ 600 mil por mês só com as extorsões, sem incluir o dinheiro arrecadado com a mineração de estanho.
Em 2002, um caçador encontrou pedaços de cassiterita (minério de estanho) na encosta de um morro no meio da selva. Quase da noite para o dia, hordas de garimpeiros apareceram.
Grupos armados travaram batalhas encarniçadas pelo domínio da área. Em 2004, uma facção “mai mai” sob o comando do coronel Samy Matumo, aliado do governo, assumiu o controle.
Uma empresa chamada Congo Mineração e Processamento, formada por investidores sul-africanos e britânicos, adquiriu em 2006 os direitos de exploração da cassiterita no garimpo.
Mas a milícia na prática barrou a companhia, alvejando seus helicópteros e expulsando seus funcionários do local.
“Temos todos os nossos documentos e autorizações em ordem”, disse Brian Christophers, o assustado diretor-gerente da Congo Mineração e Processamento. “Escrevemos ao chefe das Forças Armadas, ao ministro das Minas e até ao presidente. Mas não há leis no Congo, só a lei da pistola.”
Christophers disse que a empresa estaria disposta a bancar parcialmente não só uma estrada até o garimpo, mas também escolas, postos de saúde e uma hidrelétrica para a população. Prometia também convidar órgãos públicos para fiscalizar as condições trabalhistas. Mas nada disso teve chance de acontecer.
Na verdade, alguns funcionários suspeitam das intenções da mineradora, temendo que uma estrada tire o trabalho de milhares de carregadores e que a mineração mecanizada reduza drasticamente a oferta de emprego. A milícia convenceu alguns funcionários e autoridades locais de que a empresa deixará a população de mãos vazias.
Os garimpeiros labutam em túneis escavados à mão e sustentados precariamente por pilares de madeira, a até 180 metros de profundidade. Há crianças entre os garimpeiros, especialmente no verão, quando pais desesperados mandam os meninos para ganharem nas minas o dinheiro que será gasto nas mensalidades escolares do ano seguinte.
Os túneis, muito estreitos, são um breu sufocante, que muitas vezes se enchem de vapores perigosos. Os garimpeiros chegam a passar 48 horas seguidas trabalhando dentro desses túneis. O garimpo a céu aberto é perigoso também: chuvas fortes causam deslizamentos e desabamentos. Não se sabe quantos trabalhadores são mortos e mutilados a cada ano.
Os garimpeiros afirmam que o dinheiro compensa o risco de se enfurnar nos túneis. Um jovem que se identificou como Pypina contou que, numa jornada boa, ganha até US$ 200. Mas seu amigo Serge disse que isso é raro. “Tem dia em que não encontramos nada, em que cavamos e cavamos, à toa”, afirmou.
Depois que os carregadores apanham a carga —às vezes em sacos mais pesados que os próprios homens—, o minério chega às mãos de atravessadores ao longo da rodovia mais próxima. Um desses atravessadores, Bakwe Selomba, disse que não se incomoda em pagar às milícias, porque isso garante o seu investimento.
“Para ser honesto, é melhor para nós que eles estejam aqui”, afirmou. “Posso mandar meus compradores andando pelo mato com um monte de dinheiro, e ninguém vai tocar neles desde que paguemos o imposto. Isso nos protege.”
A cassiterita congolesa representa uma ínfima parcela do mercado global, mas nos últimos anos a oferta é tão reduzida que as restrições à mineração em Bisié já causam altas nos preços. Neste ano, o governo tentou fechar o garimpo, que, no entanto, foi rapidamente reaberto por autoridades locais, temendo os custos políticos e econômicos de deixar milhares de garimpeiros sem trabalho e de interromper o fluxo de caixa para um volátil comandante rebelde.
Em maio, os senadores americanos Sam Brownback e Richard Durbin apresentaram um projeto que exige a certificação dos minerais importados do Congo. “Sem saber, dezenas de milhões de pessoas nos Estados Unidos podem estar colocando dinheiro nos bolsos de alguns dos piores violadores de direitos humanos do mundo, simplesmente por usar um celular ou laptop”, declarou Durbin na época.
Em Bisié, quase nenhum dos trabalhadores —que vivem isolados e endividados— sabe para que serve o estanho que coletam nas minas.
“É para armas”, arriscou Djuma Assualani, 21. “[Fuzis] Kalashnikov, bombas. Eles fazem guerra com isso.” “É ouro”, gritou Makami Kimima, 18, que veio ao garimpo na esperança de ganhar dinheiro para voltar a estudar, mas acabou se endividando. Seus colegas zombaram da sua ignorância.
“É uma coisa que nem ouro”, corrigiu-se. “Vai para a América. E para a China. Deixa as pessoas ricas.”


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