São Paulo, segunda-feira, 26 de julho de 2010

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

O lugar onde você sempre será recebido


Autor reflete sobre famílias e a mutante definição de lar

Quando estive na África do Sul, recentemente, fui ao cemitério judaico nos arredores de Johannesburgo. Era uma manhã perfeita de inverno no planalto, luminosa e calma. Em um muro ao fundo do cemitério, há uma placa contendo uma inscrição em memória de minha mãe, que nasceu ali em 1939 e morreu em Londres em 1999.
Na África, a terra à qual uma pessoa pertence é identificada por onde estão os túmulos de seus antepassados. Segundo esse princípio, parece certo que minha mãe seja recordada em Johannesburgo. Os pais dela foram sepultados naquele cemitério, assim como seu avô, Isaac Michel, cofundador, em 1927, da OK Bazaars, uma rede pioneira de lojas de departamentos. Tenho uma foto de Isaac, em pose de magnata -um Henry Ford sul-africano.
As fortunas vão e vem. A dele se foi, o que é outra história. Muito antes de isso acontecer, minha mãe aproveitou os frutos do empreendedorismo de Isaac, antes de o amor de um médico jovem, meu pai, tê-la tirado daquele casulo confortável e a levado para o frio de Londres no pós-Guerra.
Minha mãe procurou adaptar-se como pôde. O desenraizamento é um processo sofrido. Superficialmente, sua vida no Reino Unido parecia tranquila, mas, em nível mais profundo, as saudades do sol e da luz africanos nunca diminuíram. Nos últimos anos de sua vida, ela passou mais e mais tempo na África do Sul. Era o lar de sua alma -outra razão para colocar a placa lá, e não em Londres.
Onde fica nosso lar? Para Robert Frost, "O lar é o lugar onde, quando você precisa ir para lá / As pessoas têm que recebê-lo". É "algo que você não precisa fazer por merecer". Minha mãe sabia que a África do Sul sempre a receberia.
Você pode viver em algum lugar por décadas, mas, mesmo assim, em seu coração, esse lugar não passar de um acampamento, um local para passar a noite, desligado do destino coletivo do pertencimento nacional. Hoje, em todo o mundo, milhões de pessoas vivem assim temporariamente estacionadas, sonhando em retornar. O inverso também é verdadeiro: o lar é algo cujas raízes podem ser fincadas em pouco tempo, como em uma revelação. Mas isso é mais raro que o exílio de longa duração.
Enquanto estava na África do Sul, terminei a leitura do belo livro "Rebel Land", de Christopher de Bellaigue, sobre as tragédias de uma cidade provincial da Turquia e -devido a essas tragédias- também sobre a dor das "várias diásporas" saídas dela. O autor, que viveu como errante durante muitos anos, sabe algo sobre esse tipo de distanciamento das origens. Sua mãe, que mudou-se do Reino Unido para o Canadá, nunca "soube exatamente a que lugar pertencia".
Ele escreve: "Após a morte dela por suicídio, quando eu tinha 13 anos, (...) eu odiava suas origens. De alguma maneira obscura, sentia que elas haviam contribuído para sua morte".
Aquilo me abalou -e me levou de volta à carta deixada por minha mãe antes de sua tentativa de suicídio, em 25 de julho de 1978: "É como se eu tivesse virado pedra. Não consigo me relacionar, e não posso mais suportar a dor e tristeza que causo àqueles a quem mais amo. (...) No momento, estou cheia de ódio por mim mesma, e nada mais. Amo minha família e meus amigos queridos, mas não consigo continuar assim".
Minha mãe sobreviveu, por um milagre. Mas o estado bipolar que a levou a tentar matar-se naquele dia -naquela que seria a primeira e mais séria de várias tentativas- nunca deixou por completo de oprimi-la. Daquele dia em diante, sua vontade de viver foi intermitente, na melhor das hipóteses.
Eu mesmo já errei por muitos lugares, e, finalmente, encontrei um lar em Nova York. No ar frio daquele cemitério, ao lado do túmulo do meu bisavô Isaac, que deixou a Lituânia ainda menino para radicar-se na África do Sul, me espantei com esse desassossego e com o gene familiar depressivo carregado por vários continentes. Refleti, maravilhado, sobre os vínculos do coração, os ossos dos antepassados e a beleza do mundo.


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