São Paulo, segunda-feira, 26 de julho de 2010

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Órfãos têm de cuidar uns dos outros no Haiti


ONGs e governo não oferecem apoio duradouro

Por DEBORAH SONTAG

CROIX-DES-BOUQUETS, Haiti - Mais de cinco meses depois do terremoto que matou sua mãe solteira, Daphne Joseph, 14, perdeu o prumo uma segunda vez quando foi retirada do precário orfanato onde se sentia em casa.
Imediatamente depois do tremor de janeiro no Haiti, ela assistiu horrorizada ao corpo mutilado da sua mãe sendo levado num carrinho de mão dos escombros de um mercado. Largada na porta de uma entidade comunitária, cogitou o suicídio.
Mas, em alguns meses, com a mesma determinação que tantos nesse país estraçalhado exibiram, Daphne se reergueu. Encontrou uma família improvisada em meio a um esfarrapado grupo de outros órfãos e de adultos que os alimentavam. Saltitando alegremente para receber uma visitante em março, ela anunciou: "Estou muito melhor!".
Em meados de junho, porém, Daphne foi levada por uma parente que não é parente de verdade -a companheira de 23 anos do pai do seu meio-irmão- e se mudou para um esquálido acampamento. Mais uma vez, ela se sentiu à deriva, questionando qual é o seu lugar.
O que torna seu questionamento especialmente pungente é que o orfanato ao ar livre para onde ela gostaria de voltar é uma âncora instável. A entidade comunitária que dirige o lugar -que é pouco mais do que um par de tendas- é atenciosa, mas carece de capacidade e recursos.
E nem o governo haitiano nem as organizações internacionais lhe ajudam de modo duradouro.
Como Daphne, o orfanato enfrenta um futuro incerto, pois está prestes a ser despejado.
"Não sabemos realmente o que vamos fazer depois", afirmou o reverendo Gerald Bataille, principal supervisor das crianças. "De alguma maneira, o mundo todo deseja ajudar o Haiti, mas sentimos que estamos à nossa própria sorte."
A organização do pastor Bataille, conhecida pela sigla Frades, é um coletivo comunitário especializado em microcrédito.
Embora não fosse uma organização de auxílio à infância antes do terremoto, ela assumiu a responsabilidade pelas crianças locais que ficaram órfãs ou foram abandonadas -de início 26; hoje são 14.
Com ajuda da prefeitura, a direção da Frades encontrou um lugar onde manter as crianças: uma obra abandonada, onde haviam sido colocados os alicerces de uma casa noturna jamais inaugurada. A ONG Save the Children ofereceu duas tendas grandes, mas nada para mobiliá-las.
Um diretor da Frades, graças a um contato pessoal, conseguiu dois meses de fornecimento de água e comida da ONG canadense Ceci. Leitores de uma reportagem de janeiro do "New York Times" sobre Daphne e outras crianças doaram cerca de US$ 1.000 em dinheiro e em Medika Mamba, uma manteiga de amendoim enriquecida com nutrientes, e formaram um grupo de apoio.
Mas a Frades precisava de mais: colchões, latrinas, chuveiros, assistência médica, dinheiro para pagar cozinheiras e monitores, além da continuidade do abastecimento de água e comida. Mesmo com tantas entidades humanitárias no país, foi difícil encontrar uma ajuda regular.
O proprietário do local, que vive em Miami, quer despejar o orfanato porque encontrou um inquilino pagante -uma escola cristã- que não aceita compartilhar o espaço. As tendas continuam vazias, exceto por algumas carteiras escolares. As crianças dormem em finas tiras de carpete espalhadas sobre um cimento arenoso.
E o universo de cuidadores à disposição delas minguou porque a organização ficou sem dinheiro. Em geral, as crianças, com seus narizes escorrendo, suas barrigas dilatadas e suas pipas de papel, cuidam umas das outras.
O pastor Bataille disse que a madrasta do meio-irmão de Daphne veio pegá-la quando ele havia saído. Ele afirmou que não pode ir apanhá-la de volta porque a Frades não tem esse direito -embora a madrasta tampouco tenha a guarda legal da menina.
Daphne agora vive no acampamento imediatamente vizinho à obra ocupada pela Frades. "Vivi na Frades desde janeiro, e ninguém jamais falou comigo de um jeito ruim lá", disse ela.
Quando os visitantes de Daphne estavam partindo, ela se agarrou à lateral do carro. "Vocês não vão me deixar aqui, vão?", sussurrou a menina. "Por favor, me levem com vocês. Por favor."


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