São Paulo, segunda-feira, 26 de julho de 2010

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ARTE & ESTILO

A verdadeira atração de uma genuína fraude

MICHAEL KIMMELMAN
ENSAIO

LONRES - À primeira vista, a exposição "Análise Minuciosa: Falsificações, Enganos e Descobertas", na National Gallery, em Londres, tem a simplicidade curiosa e divertida de uma feira de ciências acadêmica.
Cerca de 30 quadros do acervo permanente do museu foram reunidos em uma mostra comemorativa sobre microscopia com luz polarizada e outras ferramentas de diagnóstico de nome confuso, hoje empregadas pelos conservadores para determinar quando e como um quadro foi feito.
A exposição pode parecer lição de casa, mas não é; longe disso. É uma dessas joias que, em meio à ciência dura, tropeça em verdades mais suculentas sobre o que realmente buscamos quando olhamos para a arte. Começando por nos instruir sobre a química da pintura, ela termina sugerindo que a arte continua fugaz, apesar de todos os utensílios que criamos para dominá-la.
No caminho ela explora o tema da identidade enganosa: um quadro doado de boa-fé pela cidade de Nuremberg a Carlos 1° em 1636 como sendo uma obra de Dürer, que provou ser uma cópia; uma cópia de um Veronese que, depois de retirada a sujeira, surge como autêntica.
E há falsificações, instigando nossos instintos mais baixos de derrubar os especialistas dos pedestais. As pessoas adoram falsificações porque elas atiçam a suspeita popular de que boa parte da arte é mera fraude, uma suspeita incentivada pelos nomes elegantes erroneamente atribuídos a ela e pelos preços insanos muitas vezes pagos.
Nomes, datas, preços, proveniência -realmente prometem uma base sólida. Nos museus e nas galerias podemos muitas vezes nos sentir à deriva. Outra "Madonna com Menino"? Verifique a etiqueta na parede. Rafael. Está bem. Temos segurança para resmungar e balançar a cabeça em aprovação.
Estou exagerando, é claro. Precisamos de nomes e números ligados aos quadros para escrever história e ocasionalmente nos lembrarmos -quando esses nomes e números se revelam errados- não apenas de artistas fraudulentos, mas de toda a infinitude da loucura humana.
Por exemplo, lá está a pintura do Renascimento italiano de uma jovem morena, modesta e de olhos grandes, parada diante de uma janela, que entrou para o acervo da galeria em meados do século 19. Ela é de Lorenzo Lotto ou de Palma Vecchio? Os especialistas discutiram. De qualquer modo, era uma beleza, apesar de sua falha: uma camada de danos logo abaixo de seu cabelo, que os conservadores só conseguiram verificar em 1978.
Eles descobriram que a morena tímida encobria uma loura opulenta cujos cabelos tinham sido escurecidos, as sobrancelhas atenuadas e os seios feitos mais discretos para transmitir o que o "restaurador" desconhecido, há mais de um século, achava que seus contemporâneos vitorianos considerariam um retrato mais adequado do Renascimento.
Para o olhar moderno, a pintura pós-limpeza parece mais surpreendente, enquanto o truque que passou por conservação um século atrás só prova como o gosto é refém de sua época.
Mas esse quadro também não é mais que uma simples aula de objeto na subjetividade histórica? Outro quadro italiano, intitulado "A Alegoria" e também adquirido há mais de um século, mostra outra loura, desta vez reclinada em uma paisagem. Quando ele foi comprado, os especialistas concordaram que era de Botticelli, e o museu pagou uma fortuna por ele, mais do que por outro Botticelli, no mesmo leilão.
Quando "A Alegoria" foi exposta, os céticos objetaram, e logo o quadro tão valorizado tornou-se uma espécie de vergonha para a galeria, que teve de admitir que talvez não fosse de Botticelli, afinal. A loura parecia um personagem de caricatura, nada semelhante ao outro Botticelli mais barato do museu, que cresceu na estima e passou a ser considerado um tesouro e uma hábil aquisição.
Supostamente uma falsificação, "A Alegoria" acabou no porão, onde um dia conservadores modernos decidiram dar mais uma olhada. Não era uma fraude. Na verdade, era uma antiga pintura de mestre, mesmo que não fosse pintada pelo mestre Botticelli.
Então, o que é "A Alegoria"? Um estudo de caso em conhecimento dúbio ou crítica enganada.
É uma pintura. E a pintura é a mesma, seja antiga ou nova, verdadeira ou falsa, original ou cópia. Seu papel na evolução das narrativas da história da arte muda. Seu preço pode subir ou descer. Mas custo não é valor.
É isso que procuramos ao olharmos para a arte, não é? Algo de valor, mais significativo que um nome ou um número. Ela exige que nós mesmos procuremos.
E, então, você nunca sabe o que poderá descobrir. "Uma Virgem com Menino e o Anjo", obra precoce de Francesco Francia, o mestre de Bolonha, foi considerada durante anos pelo museu um exemplo da educação do pintor como ourives. Então, apareceu um quadro idêntico. Conservadores da galeria examinaram sua versão e descobriram que as pequenas rachaduras na superfície tinham sido pintadas; na verdade, eram falsas. A ciência provou tudo. O quadro está na exposição em uma parede da vergonha, cercado por provas de seu verdadeiro crime.
Mas, veja bem, não se importe com o que diz a etiqueta e você também poderá notar alguma outra coisa sobre o quadro, uma outra verdade. Ele é lindo.


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