São Paulo, segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LENTE

A arte da manipulação

A oportunidade de editar o passado muitas vezes se mostra irresistível. Stálin apagou Trótski; Nixon apagou seus 18 minutos de gravações do Watergate; os livros escolares do Japão fingem que nada de ruim aconteceu em Nanquim.
O neto de Ernest Hemingway decidiu recentemente lançar uma "edição restaurada" de "Paris É uma Festa". "Acho que esta edição consertará a história", disse Sean Hemingway ao "New York Times".
O original retratava a avó de Sean, a segunda mulher de Ernest Hemingway, em termos nada elogiosos. Por isso, Sean reeditou o texto original e reorganizou os capítulos, e recentemente a editora Scribner publicou uma nova edição em que a avó de Sean aparece sob uma luz mais simpática. A. E. Hotchner, amigo de Hemingway que ajudou a reunir o manuscrito original (o livro foi publicado postumamente), criticou as alterações.
"Tendo essa reforma como precedente, o que a editora fará se, por exemplo, um descendente de F. Scott Fitzgerald pedir a remoção do capítulo de 'Paris É uma Festa' que fala sobre o tamanho do pênis de Fitzgerald, ou se o neto de Ford Madox Ford quiser apagar referências ao odor corporal de seu ancestral?", ele escreveu no "Times".
Essas tentações levaram a Wikipédia a modificar suas políticas editoriais. Antes, não era difícil alguém inserir informações erradas em um verbete da enciclopédia on-line. Em março, um estudante irlandês acrescentou uma citação falsa atribuída ao compositor francês Maurice Jarre, após sua morte. O comentário falso foi reproduzido em vários jornais.
Isso levou a Wikipédia a acrescentar um nível de revisão de artigos sobre pessoas vivas, modificando a filosofia da enciclopédia de que todo o mundo tem os mesmos direitos ao editar os verbetes.
"Provavelmente houve um tempo em que a comunidade se importava menos com coisas que eram imprecisas ou alteradas de alguma maneira -fossem simples mal-entendidos ou um autor com um machado nas mãos", disse ao "Times" o presidente do conselho da Wikipédia, Michael Snow. "Hoje existe menos tolerância para esse tipo de problema."
Aparentemente, os editores de um documentário britânico sobre Muhammad Ali estão menos preocupados com essas mudanças. "Thriller in Manila", sobre a luta de Ali com Joe Frazier, foi criticado por ser tendencioso a favor de Frazier. Quando o DVD foi lançado, em junho, um segmento de dez minutos que tratava de uma luta anterior em Nova York, em 1971, na qual Frazier derrubou Ali, havia sido cortado pela metade, e a ação filmada, substituída por fotos estáticas.
"Mesmo depois de tantos anos, alguém quer salvar a cara de Muhammad Ali", disse um resenhista no "Times".
O desejo de manipular nem sempre é pernicioso. Às vezes a tecnologia cria um novo tipo de diversão. Fãs de filmes antigos podem comprar um produto que coloca um fundo infinito em qualquer sala de estar. Essas telas verdes são o truque dos efeitos especiais de muitos filmes, permitindo que os atores apareçam no espaço sideral ou na antiga Roma sem ter saído da frente da tela. Hoje, por US$ 170, qualquer pessoa pode comprar um fundo infinito com um software apropriado e se inserir em uma cena de filme.
Por isso, se você acha que poderia se sair melhor que Clark Gable como Rhett Butler em "E o Vento Levou", dizendo a Scarlett O'Hara: "Eu acho que não vou beijá-la, embora você precise muito de um beijo. É isso que está errado com você. Você deveria ser beijada com mais frequência", esta é a sua chance. Pelo menos até que chegue o próximo editor, é claro.


Envie comentários para nytweekly@nytimes.com



Texto Anterior: Ajuda do governo dos EUA alimentou alta recente em Wall Street

Próximo Texto: Cartas ao International Weekly

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.