São Paulo, segunda-feira, 27 de abril de 2009

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"É difícil acreditar que é isso que está derretendo as geleiras"

Adam Ferguson para o New York Times
Estima-se que a fuligem emitida por fogões rústicos como este de Kohlua, na Índia, seja indispensável por 18% do aquecimento global do planeta

Por ELISABETH ROSENTHAL

Kohlua, Índia

Enquanto mulheres com sáris esfarrapados e multicoloridos assam pão e fervem lentilhas ao anoitecer sobre fogueiras alimentadas com gravetos e esterco, as crianças tossem por causa da fumaça espessa que enche suas casas. Uma fuligem escura se acumula sob os telhados de palha. Ao amanhecer, uma nuvem marrom domina o horizonte.
Em Kohlua, no centro da Índia, onde não há carros e quase não se usa eletricidade, as emissões de dióxido de carbono (CO2) são quase zero. Mas a fuligem (chamada também de carbono negro) de dezenas de milhares de aldeias como esta nos países em desenvolvimento está se revelando uma causa importante e antes ignorada da mudança climática global.
"É difícil acreditar que é isso que está derretendo as geleiras", disse Veerabhadran Ramanathan, um dos maiores climatologistas mundiais, enquanto percorria um emaranhado de choupanas de barro, cada uma contendo um fogão que lança fuligem na atmosfera.
Enquanto o dióxido de carbono é responsável por 40% do aquecimento global, o carbono negro aparece como a segunda maior causa -estudos recentes estimam que ele responda por 18% do aquecimento. Diminuir tais emissões seria um jeito relativamente barato de conter significativamente o aquecimento global- especialmente em curto prazo, de acordo com os especialistas.
Substituir fogareiros primitivos por versões modernas, que emitem bem menos fuligem, poderia representar uma solução temporária enquanto os países enfrentam a tarefa mais difícil de conter as emissões de CO2 por combustíveis fósseis.
Na verdade, a redução do carbono negro é uma das soluções mais relativamente rápidas e simples, usando tecnologias já existentes, que os cientistas defendem para evitar as piores consequências do aquecimento global. "Está claro para qualquer pessoa que se importe com a mudança climática que isso terá um enorme impacto sobre o meio ambiente global", disse Ramanathan, professor de ciência climática do Instituto Scripps de Oceanografia, de San Diego (Califórnia, EUA), que colabora com o Instituto de Energia e Recursos de Nova Déli em um projeto para ajudar famílias pobres a adquirirem novos fogões.
"Em termos de mudança climática, estamos nos dirigindo rapidamente para o abismo, e [com a troca] poderíamos ganhar tempo", disse Ramanathan, que deixou a Índia há 40 anos, mas voltou ao país para esse projeto.
O melhor é que a redução da fuligem pode ter um efeito rápido. Ao contrário do CO2, que passa anos na atmosfera, a fuligem só permanece por algumas semanas. A adoção de fogões com baixa emissão de fuligem elimina rapidamente os efeitos do carbono negro sobre o aquecimento, enquanto a desativação de uma usina termoelétrica a carvão leva anos para reduzir substancialmente as concentrações globais do CO2.
Mas a conscientização sobre o carbono negro é tão recente que ele nem chegou a ser mencionado com um agente do aquecimento no relatório de 2007 do painel da ONU que pronunciava como "inequívocas" as evidências do aquecimento global. Mark Jacobson, professor de engenharia ambiental da Universidade Stanford (Califórnia), disse que a não inclusão do carbono negro nos esforços climáticos internacionais foi "bizarra", mas "reflete parcialmente quão nova é a ideia". A ONU está buscando formas de incluir o carbono negro nos programas de combate à mudança climática, assim como o governo dos EUA.
Na Ásia e na África, os fogões rústicos produzem a maior parte do carbono negro, embora ele também seja emitido por motores a diesel e usinas a carvão. Nos EUA e na Europa, as emissões de carbono negro foram significativamente reduzidas por filtros. As partículas de fuligem aquecem o ar e derretem o gelo ao absorverem o calor do sol quando se assentam sobre as geleiras. Um estudo recente estimou que o carbono negro poderia responder por até metade do aquecimento do Ártico. Embora com o tempo as partículas tendam a se assentar e não tenham o alcance global dos gases do efeito estufa, elas viajam. A fuligem da Índia já foi encontrada nas ilhas Maldivas e no Tibete; dos EUA, ela chega ao Ártico.
As implicações ambientais e geopolíticas das emissões de fuligem são enormes. A previsão é de que as geleiras do Himalaia percam 75% do seu gelo até 2020, segundo Syed Iqbal Hasnain, especialista indiano. Essas geleiras são a fonte da maior parte dos grandes rios da Ásia. O resultado em curto prazo do seu degelo seria uma grave inundação de localidades montanhosas. O número de enchentes provocadas por lagos glaciais já está aumentando rapidamente, segundo Hasnain. Quando as geleiras encolherem, os grandes rios da Ásia vão baixar ou secar durante parte do ano, e certamente haverá batalhas desesperadas por água, numa região já conflituosa.
Os médicos há muito alertam sobre os devastadores efeitos do carbono negro para a saúde nos países pobres. A combinação dos benefícios físicos e ambientais significa que reduzir a emissão de fuligem é "um excelente negócio", disse a advogada Erika Rosenthal, da ONG Earth Justice, de Washington. "Agora é do interesse de todos lidar com coisas como os fogareiros, não só porque centenas de milhares de mulheres e crianças lá longe estão morrendo prematuramente."
É curioso que remotas aldeias rurais como Kohlua possam ter um papel na crise climática. Não há carros, não há água corrente, e a eletricidade, intermitente, alimenta umas poucas lâmpadas. Seus 1.500 habitantes cultivam trigo, mostarda e batata e realizam trabalhos em Agra, onde fica o Taj Mahal, a cerca de duas horas de ônibus.
Ganham cerca de R$ 5 por dia e, em geral, nunca ouviram falar do aquecimento global. Mas notaram as secas dos últimos anos, que os cientistas dizem que podem estar ligadas à mudança climática. As lavouras amadurecem antes e apodrecem com mais frequência do que há dez anos. Os moradores também estão cientes de que o carbono negro pode corroer. Em Agra, fogareiros e motores a diesel são proibidos na área em torno do Taj Mahal, porque a fuligem danifica a preciosa fachada.
Mesmo assim, não é simples substituir centenas de milhões de fogões rústicos. "[Os novos modelos] parecem ótimos, mas eu teria de vê-los, testá-los", disse Chetram Jatrav, que desejaria ter um fogão que "fizesse menos fumaça e usasse menos combustível", mas não pode comprá-lo. Igualmente importante, o fogo aberto dos fogareiros dá o sabor característico a alguns pratos tradicionais.
Em março, um projeto chamado Surya começou um "teste de mercado" de seis fogareiros alternativos em aldeias. Os pesquisadores já se preocupam com o fato de que os novos fogões parecem instrumentos científicos e são frágeis; um deles quebrou quando uma moradora empurrou gravetos para dentro com muita força.
Mas, para que o carbono negro seja tratado em grande escala, a aceitação dos novos fogões é crucial. "Não vou falar para as moradoras que o CO2 está subindo e que em 50 anos elas podem ter inundações", disse Ibrahim Rehman, colaborador de Ramanathan no Instituto de Energia e Recursos. "Falarei a elas sobre os pulmões e as crianças delas, e sei que isso ajudará com a mudança climática."


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