São Paulo, segunda-feira, 27 de abril de 2009

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inteligência

ROGER COHEN

Tortura, verdade e consequências

Nova York

Quando advogados que supostamente representam a consciência constitucional da Casa Branca discutem o tipo de inseto que deve ser empregado para aterrorizar um prisioneiro colocado dentro de uma "caixa de confinamento", a extensão da desordem em que mergulhou os EUA pós-11 de Setembro é evidenciada.
A decisão corajosa do presidente Barack Obama de divulgar os memorandos legais dando pareceres sobre a tortura, redigidos apesar da oposição feita pela CIA em seu próprio governo, equivale a uma reafirmação crítica de valores americanos fundamentais, incluindo o Estado de direito, a responsabilidade do Executivo e a transparência do processo democrático.
Os exemplos podem ser mais poderosos que a coerção na luta contra os inimigos dos EUA. Obama compreende isso. Num clima de medo, sob um presidente fraco, a lei foi manipulada pelas próprias pessoas do Departamento de Justiça que deveriam zelar por seu cumprimento.
Minuciosos, labirínticos, evasivos, os memorandos são símbolos de quão perigosa pode ser a linguagem. Eles nos lembram de como uma cláusula de um burocrata pode levar ao quase afogamento de um ser humano e a outras dores físicas repulsivas.
Com a divulgação dos memorandos, Obama busca encerrar um episódio vergonhoso aos EUA. Ele exortou o país a olhar para o futuro, e não o passado. Deixou claro que seu governo é contra levar à justiça os agentes da CIA que utilizaram as técnicas, mas disse que, em última análise, caberá a seu secretário da Justiça decidir o que fazer em relação aos advogados que redigiram as políticas que justificaram a tortura. A inclinação de Obama de evitar ação judicial vem suscitando críticas.
Martin Gabus, destacado advogado de Nova York, escreveu em carta ao "New York Times" que é preciso submeter os responsáveis a processos criminais. Comissões da verdade ou investigações pelo Congresso não bastam, argumentou, porque "expõem, mas não dissuadem", e que "apenas um processo criminal pode dissuadir e punir os responsáveis".
O equilíbrio correto entre justiça e estabilidade, castigo e reconciliação, punição e paz é sempre uma questão explosiva após períodos de trauma nacional. As sociedades pós-comunistas da Europa, a África do Sul pós-apartheid e a Bósnia pós-guerra já enfrentaram o mesmo desafio.
Os EUA se traumatizaram depois de 11 de Setembro; as guerras no Afeganistão e no Iraque exacerbaram sua divisão e desorientação. Apenas com a eleição de Obama algumas das feridas começaram a se fechar, e um clima de medo -frequentemente cultivado pela Casa Branca de Bush- começou a dar lugar à razão.
É porque o país está fragilizado, econômica e socialmente, e porque essas guerras ainda estão inacabadas, que penso que Obama tomou a decisão correta em se opor à abertura de processos criminais contra agentes da CIA e aqueles que lhes deram conselhos legais. Com o país ainda em guerra, tais processos, se abertos, poderiam dividir os serviços de inteligência e o setor militar de maneira paralisante.
O clima de medo e desorientação no qual os memorandos foram redigidos não se limitava ao Departamento de Justiça. No pós-11 de Setembro, muitos, incluindo alguns jornalistas, deixaram de exigir do Executivo os mais elevados padrões éticos, morais e políticos, especialmente na fase que antecedeu a guerra no Iraque. Essas falhas não representaram manipulações grosseiras das leis a serviço de desumanidade, mas foram falhas, mesmo assim.
A melhor forma de trazer à tona para a posteridade o mundo macabro revelado pelos memorandos é com alguma comissão de verdade que coloque a nu não só as falhas da Casa Branca e do Departamento de Justiça, mas também o colapso da responsabilidade do Congresso e do Executivo, que permitiu as transferências sigilosas de detentos para países terceiros, para as prisões secretas e para as inserções de insetos em caixas de confinamento.

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