São Paulo, segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

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CRÍTICA ARQUITETÔNICA

A modernidade chega ao mundo islâmico

Árabes fazem museus para exibir nova imagem

TDIC/Museu Nacional Zayed
Concepção artística do Museu Nacional Zayed, em Abu Dhabi

REPORTAGENS DE NICOLAI OUROUSSOFF

Abu Dhabi, Emirados Árabes Unidos
É uma experiência audaciosa: dois pequenos países petrolíferos do Oriente Médio estão usando a arquitetura e as artes para reformularem suas identidades nacionais praticamente da noite para o dia. De quebra, pretendem melhorar a imagem árabe no exterior, mostrando o caminho para uma sociedade moderna dentro das fronteiras do islã.
Aqui, numa ilha árida nos arredores de Abu Dhabi, operários já escavaram as fundações de três museus colossais: uma filial do Guggenheim desenhada por Frank Gehry, que custará US$ 800 milhões e terá 12 vezes o tamanho da matriz, em Nova York; um posto avançado do Louvre, de US$ 500 milhões, projeto de Jean Nouvel; e uma vitrine da história nacional, criada pelo escritório Foster & Partners. Além disso, há planos para mais um museu, de história marítima, a ser projetado por Tadao Ando.
A cerca de 300 km dali, Doha, capital do Qatar, inaugurou em 2008 um Museu de Arte Islâmica, templo imaculadamente branco de I.M. Pei, que está ganhando a companhia de um museu de arte árabe moderna, com uma coleção que abrange do século 19 ao presente. As obras de um museu de história do Qatar, também assinado por Nouvel, acabam de começar, e o projeto de um museu de arte orientalista, de autoria do escritório suíço Herzog & de Meuron, será apresentado no ano que vem.
Para um crítico que viaje pela região, a velocidade com que os museus estão sendo construídos em Abu Dhabi e as grifes internacionais ligadas a alguns deles evocam os espetáculos de exagero imobiliário que moldaram outro emirado, o de Dubai. Já a visão apresentada por Doha parece ser uma tentativa mais calculada de encontrar um equilíbrio entre modernização e islã.
Mas, em ambos os casos, os líderes também veem esse surto de construções como parte dos seus esforços para recapacitar suas sociedades para um mundo pós-11 de Setembro e pós-petróleo. A meta é não só construir uma imagem mais positiva do Oriente Médio mas também criar uma espécie de nova Rota da Seda, em que seus países funcionem como poderosas articulações culturais e econômicas entre o Ocidente e potências emergentes como Índia e China.

Uma nova narrativa
Há pouco mais de um século, Abu Dhabi era uma aldeia de beduínos, sem qualquer tradição literária ou científica.
Mas, nos dias de hoje, a palavra de ordem é ser global. O xeque Khalifa bin Zayed al Nahayan, filho do pai da pátria, xeque Zayed bin Sultan al Nahayan, procurou Thomas Krens, diretor da Fundação Solomon R. Guggenheim, de Nova York, com o objetivo de criar uma filial do Museu Guggenheim -versão para o Oriente Médio daquilo que Krens e Gehry conseguiram uma década antes em Bilbao, na Espanha. Mas as ambições do xeque não eram pequenas: em poucos anos, a ilha Saadiyat estava sendo planejada como uma cidade em miniatura, construída em torno de dois aspectos: cultura e lazer.
O megacontrato de Abu Dhabi com o Louvre foi assinado em 2007; outro, com o Museu Britânico, para conceber exposições no Museu Nacional Zayed, foi fechado dois anos depois. O museu marítimo, de Tadao Ando, e um centro de espetáculos de Zaha Hadid também estão sendo planejados. No lado sul da ilha, existirá ainda um campus da Universidade de Nova York e, num local a ser definido, um empreendimento para estúdios de cinema e empresas de mídia, destinado, entre outras coisas, a fornecer treinamento e oportunidades profissionais a jovens dos Emirados.
O xeque e seu governo querem que tudo isso instile orgulho nacional em uma nova geração, dando aos cidadãos as ferramentas intelectuais e psicológicas para viver numa sociedade global. A ideia, conforme me disseram várias pessoas numa recente visita, é mostrar uma nova narrativa, que rompa a longa história de declínio regional, incluindo os recentes sobressaltos provocados pelo fundamentalismo islâmico, e restabelecer uma aparência de paridade cultural com o Ocidente.

Globalização ou colonização?
De todos os projetos, o do Louvre parece o que mais naturalmente se encaixa nas aspirações globais de Abu Dhabi. O governo está pagando à França US$ 1,3 bilhão, principalmente para estabelecer um acordo para o empréstimo de obras, assegurando a possibilidade de pegar o que há de melhor nas enciclopédicas coleções do Louvre e de vários outros museus. A abrangência e profundidade dessas coleções permitirão ao Louvre Abu Dhabi exibir os feitos culturais de civilizações de cada canto do mundo.
Mas, enquanto o Louvre poderá se valer de milênios de variadas influências culturais, o Guggenheim Abu Dhabi, cujo foco vai de 1965 em diante, período dominado pelo Ocidente, revela os problemas que surgem quando a mensagem política que você está tentando transmitir colide com a realidade histórica.
Krens concebeu um "museu global" que, no entanto, parece admitir o primado ocidental na arte contemporânea. O museu foi organizado em torno de um núcleo de galerias no primeiro andar, representando os principais movimentos culturais na Europa e nos Estados Unidos. As coleções islâmicas seriam abrigadas dois andares acima. O viés pró-ocidental do plano não agradou aos clientes, nem a Richard Armstrong, que substituiu Krens como diretor da Fundação Guggenheim em 2008.
Há nove meses, Armstrong começou a desenvolver um plano alternativo, em que artistas de todo o mundo seriam agrupados em galerias temáticas: arte abstrata, Pop Art, arte performática, e assim por diante. Mesmo nesse esquema, porém, Armstrong admite que as galerias acabarão sendo organizadas em torno de peças-âncora, cujos autores são majoritariamente artistas ocidentais de primeira linha, como Andy Warhol, Robert Rauschenberg e Anselm Kiefer.
Questões similares surgiram em relação ao Museu Nacional Zayed, a instituição que melhor representa a identidade do país. Ele deveria explorar os registros históricos relativamente esparsos dos Emirados Árabes Unidos por meio da vida do xeque Zayed, um homem conhecido por sua humildade, que morreu em 2004.
Mas quando Norman Foster apresentou sua proposta inicial em 2007, ouviu que a liderança do país queria algo mais grandioso, embora não tivesse uma ideia exata do que colocaria no interior.
Foster foi mandado de volta à prancheta, e uma equipe de curadores do Museu Britânico preparou um programa para a exposição. O novo projeto contém um enorme aterro ajardinado, coroado por cinco torres semelhantes a penas -a mais alta delas com certa de 90 metros-, numa tentativa de evocar a falcoaria, um passatempo favorito da realeza árabe.
Que as coleções completas do Guggenheim e do Museu Nacional sejam planejadas no Ocidente desperta uma questão mais ampla: embora o dinheiro para esses empreendimentos venha do petróleo dos Emirados, os projetos em si estão sendo formatados quase que exclusivamente por estrangeiros.
O ritmo frenético com que esses planos são implementados contribui para uma sensação, expressa por alguns aqui, de que o que está sendo apresentado como a adesão de uma sociedade à cultura global acabe se tornando só mais um exemplo de colonialismo cultural.

Tradição árabe no Qatar
Doha, como Abu Dhabi, em 50 anos passou de pequena aldeia mercantil para uma cidade com cerca de 1 milhão de habitantes. Mas os dois museus que estão sendo construídos nos arredores de Doha e as obras de artes e artefatos aos quais são dedicados -coleções particulares reunidas por membros da família governante- refletem uma abordagem mais paciente e gradual na construção da cultura do que em Abu Dhabi, e com os olhos menos postos no Ocidente. A identidade de Doha está tecida basicamente com as tradições cosmopolitas da região, de lugares como Damasco, Istambul e Cairo.
As três principais coleções nacionais qatarianas foram formadas pelos xeques Hassan al Thani e Saud al Thani, primos do emir, a partir da década de 1980, quando as elites do país ainda viam a arte como algo dúbio, até afeminado.
Na década de 1990, o xeque Hamad bin Khalifa al Thani começou a abrir cautelosamente as portas ao mundo exterior. Depois que Saud aceitou doar sua coleção de arte islâmica ao Estado, Hamad contratou Pei para projetar um prédio que a abrigasse.
O Museu de Arte Islâmica, resultado disso, foi saudado em sua inauguração como uma bem-sucedida interpretação modernista de precedentes islâmicos, da fonte de ablução da mesquita Ibn Tulun, no Cairo, às fortalezas islâmicas do norte da África. Suas formas monumentais expressam o ideal de Pei sobre um mundo em que modernidade e tradição coexistem em perfeito equilíbrio.
Tão notável quanto a arquitetura de Pei, no entanto, é o óbvio subtexto da coleção, cujos tesouros abrangem de cerâmicas do Iraque a cortinas de seda da Espanha e joias da Índia. Se essas peças exploram a riqueza da arte islâmica, sua apresentação enfatiza as diferentes correntes que as produziram.
"Meu pai costuma dizer que, para termos paz, precisamos primeiro respeitar as culturas uns dos outros", disse a xeque Al Mayassa Bint Hamad al Thani, 28, filha do emir e principal força por trás do programa de construção de museus no Qatar. "E as pessoas no Ocidente não entendem o Oriente Médio. Elas chegam com Bin Laden na cabeça."
Os museus, espera ela, ajudarão "a mudar essa mentalidade".

Transformação social
Por mais abrangente que a visão de Doha pareça, no entanto, algumas questões ainda pairam, como em Abu Dhabi.
"Há quem viva aqui há 50 anos", disse Fares Braizat, um professor jordaniano da Universidade do Qatar, que tem trabalhado num censo de cidadãos estrangeiros. "Eles falam árabe com um dialeto qatariano, mas ainda não podem ter cidadania qatariana" e seus consequentes benefícios: educação e saúde gratuitas, empréstimos governamentais com juro zero, preferência na contratação, sensação de igualdade.
Braizat aponta o que pode ser a grande falha dos planos em ambas as cidades. Os líderes estão investindo enormes quantias nesses projetos. Mas, caso não consigam superar esse último obstáculo, através do convencimento das pessoas de que elas também partilham desse futuro, eles jamais realizarão suas metas mais ambiciosas. Pior ainda, vão acabar reforçando o cinismo a respeito do envolvimento com o Ocidente, razão que já derrubou o modernismo de estilo ocidental nesta parte do mundo algumas décadas atrás.


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