São Paulo, segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

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ENSAIO

Projetos preparam sauditas para a vida pós-petróleo

"Oásis liberais" projetam vida saudita após petróleo

Jidda, Arábia Saudita
A uma hora de carro desta cidade portuária, um enorme portal adornado por três cúpulas se ergue em meio à areia, como se fosse o cenário de um filme mudo fantástico. Mas fantástico mesmo é o urbanismo contemporâneo do local, a futura Cidade Econômica Rei Abdullah, à beira do mar Vermelho.
Projetada para uma população de 2 milhões de pessoas, a cidade é a versão do Oriente Médio para as "zonas econômicas especiais" que têm florescido em lugares como a China. É uma das quatro sendo erguidas no deserto saudita, todas com previsão de serem concluídas até 2030.
Elas evocam tradicionais iniciativas modernistas de planejamento, como a criação de Brasília na década de 1950 ou os colossais experimentos urbanos soviéticos dos anos 1930, mas são guiadas pela preocupação com o futuro, não por um idealismo utópico.
Como mais de 13 milhões de sauditas -metade da população- têm menos de 20 anos, o rei Abdullah, 86, está tentando criar mais de 1 milhão de novos empregos e 4 milhões de moradias num prazo de dez a 15 anos. Ele e seu clã real anteveem uma economia menos dependente do petróleo, comandada por uma nova classe de médicos, engenheiros e empresários com penetração no mercado global.
Para isso, o governo quer se abrir a algum tipo de modernidade no estilo ocidental. A ideia é criar ilhas a partir das quais a mudança se infiltraria.
Caso o plano funcione, poderá transformar a Arábia Saudita em uma sociedade tecnologicamente avançada, controlada por uma autocracia religiosa ligeiramente tolerante. Mas ele também pode provocar violência militante e repressão governamental.
"O que estão tentando fazer é difícil", disse Bernard Haykel, professor da Universidade Princeton nos Estados Unidos e autor de vários trabalhos sobre a Arábia Saudita.
"Alguém mandando você rezar -a religião imposta agressivamente-, isso não será permitido nessas cidades", disse Haykel. "É um islã mais ecumênico. Mas é uma ladeira escorregadia. Uma vez que você começa, basicamente abre as portas a um certo grau de diversidade e tolerância."
A Arábia Saudita parece um país moderno. Abaixo da superfície, no entanto, aparecem as restrições do islamismo wahhabita. Há poucos parques públicos em Riad, a capital; os restaurantes têm áreas separadas para homens e mulheres; os bancos têm entradas segregadas por gênero; cinemas são proibidos.
Recentemente, quando estive em Riad, as estruturas de aço das primeiras torres do Bairro Financeiro podiam ser vistas sendo erguidas no extremo norte da cidade. As diretrizes do projeto não dizem nada sobre a separação entre os sexos.
Jacob Kurek, sócio do escritório de arquitetura Henning Larsen, me mostrou plantas de apartamentos em nada diferentes de um prédio residencial padrão em Nova York.
Já as sete mesquitas que eram parte do projeto original foram reduzidas a menos da metade, e a maioria das atividades religiosas cotidianas ocorrerá em salas de orações públicas acomodadas nos próprios edifícios. "Nenhuma questão religiosa interferiu de forma alguma no projeto", disse Kurek. "Eles querem atrair tanto os ocidentais quanto os jovens sauditas que já viajaram ao exterior, a fim de integrá-los."
Mas essa integração termina no limite do bairro. Autoestradas cercam o local, isolando-o entre rios de tráfego. A maioria das pessoas chegará de carro, estacionando em um dos quatro níveis subterrâneos. Mais de 3 km de passarelas suspensas, com ar-condicionado, ligarão os prédios.
O projeto expõe as vantagens de uma "ilha" que permitirá que as autoridades fechem o bairro caso haja alerta de segurança. O isolamento da área evitará contato estreito da sociedade de Riad com essa visão da modernidade.
Quando estiver concluído, em 2012, o Bairro Financeiro será um mundo à parte. Ao longo da década seguinte, com o crescimento da cidade ao seu redor, ambos acabariam mais integrados.
A Cidade Econômica Rei Abdullah -ou KAEC na sigla em inglês- foi concebida como outra ilha de relativo liberalismo. Seus primeiros estágios estão construídos: edifícios empresariais com vidro fumê, uma longa fileira de casas geminadas e um calçadão com vista para o mar Vermelho.
Segundo a agência que desenvolve as cidades econômicas, esse núcleo dará origem a uma cidade murada com 400 mil apartamentos, casas e mansões; um bairro comercial central; uma zona industrial; um campus universitário com 101 hectares; e um dos maiores e mais avançados portos do mundo. "Todo o objetivo é criar empregos", disse Amr al Dabbagh, presidente da agência. "A maior refinaria de petróleo gera no máximo 1.500 empregos. Vamos gerar 1 milhão."
A KAEC quer atrair corporações ocidentais e seus empregados a fim de criar uma câmara de mistura social. O coração da cidade será um bairro empresarial. As áreas residenciais serão entremeadas por formas de espaço público -parques, praças e passeios à beira-mar- impossíveis de encontrar na Arábia Saudita.
Representações artísticas do projeto mostram casais passeando alegremente pela cidade, vestindo uma ambígua mistura entre os estilos islâmico e ocidental. Ahmed Osilan, assessor de Dabbagh, explicou que "a coeducação, a mistura -elas são ferramentas para ocasionar várias mudanças que o rei deseja".
No futuro, a KAEC deverá ter a companhia de três cidades: A Cidade do Conhecimento Econômico, nos arredores de Medina; a Cidade Econômica Príncipe Abdulaziz bin Mousaed, ao norte de Riad; e a Cidade Econômica Jazan, destinada a fornecer empregos industriais aos sauditas da região de fronteira com o Iêmen. "Eles são empreendimentos contidos", disse Osilan. "Caso tenham sucesso, serão contagiosos para a região vizinha. Caso fracassem, ainda estarão contidos."
Mas esse tipo de contenção pode ser difícil na era da internet, como mostrou o ultraje causado há um ano por um vídeo do YouTube que mostrava homens e mulheres dançando juntos na primeira faculdade mista do país, a Universidade de Ciência e Tecnologia Rei Abdullah.
"Até mesmo muitas mulheres têm medo da mudança", afirmou Eman al Najaf, 31, que mantém um blog saudita sobre questões femininas. "As mulheres que foram educadas o foram para permanecerem iguais. Sofreram uma lavagem cerebral e preferem viver na sua zona de conforto."
E as pessoas questionaram por que o governo está despejando bilhões de dólares na criação de cidades inteiras, enquanto áreas das cidades existentes vêm se transformando em favelas.
Caso a visão do governo fracasse, isso poderá desencadear confrontos intensos com as forças militantes. Mas um risco ainda maior, segundo alguns, seria o governo não avançar em nada.
"Se essas cidades não funcionarem e não conseguirem gerar empregos e, digamos, o preço do petróleo cair, você poderia ter massas de pessoas se mobilizando contra o governo, e isso poderia assumir a forma de extremismo religioso", afirmou Haykel. "Mas, em longo prazo, se eles não gerarem uma economia que não seja dependente do petróleo, o país em si se tornaria inviável."


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