São Paulo, segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

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INTELIGÊNCIA/ROGER COHEN

A fase sombria do Irã

"Não temos mais espaço para pensar, para respirar", diz uma artista

Londres
Uma história está fazendo as rondas em Teerã. Uma raposa topa com outra que está em fuga, assustada. "Por que você está fugindo?", pergunta a primeira raposa. "Você não ouviu?", responde a segunda. "O regime está matando todas as raposas que têm três testículos." "Mas não temos três testículos!" "Eu sei. Mas estão matando primeiro e só contam os testículos depois."
Essa pequena parábola capta a fase sombria em que o Irã mergulhou desde a tumultuosa eleição de junho de 2009. Conversas recentes com amigos iranianos apontam para altos níveis de suspeita, ansiedade e até mesmo paranoia, a despeito da calma relativa imposta pela brutal repressão pós-eleitoral. Os preços da gasolina e das tarifas de serviços públicos estão subindo. Em cada esquina de Teerã, são distribuídos folhetos oferecendo cursos de inglês, pré-requisitos para conseguir vistos para a Austrália ou o Canadá.
A Presidência de Mahmoud Ahmadinejad está mostrando ser a mais divisiva dos 31 anos de história da República Islâmica. A demissão abrupta do ministro do Exterior, Manouchehr Mottaki, neste mês, foi apenas o sinal mais recente disso. Mottaki, que descreveu sua demissão como "anti-islâmica e ofensiva", conta com apoio importante no Majlis ou Parlamento.
Uma sociedade jovem está profundamente alienada de um regime fraturado que é hábil em sobreviver pela inércia, mas, com essa exceção, é disfuncional.
Conheci recentemente uma artista iraniana maravilhosa que trabalha com importantes museus ocidentais. Ela me contou de um pesadelo recorrente seu: um terremoto sacode Teerã, ela foge correndo para a rua -e, então, para seu horror, percebe que esqueceu seu "hijab" em casa. A despeito dessa angústia, continua no Irã, pois ama seu país, encontra inspiração ali e acredita na possibilidade de mudanças.
Outros países lhe pareciam entediantes e previsíveis, disse ela. Existe um vínculo, por mais doloroso seja, entre repressão e criatividade. Criar arte é um escape, mesmo enquanto o espaço para criar arte se reduz, obrigando o artista a um jogo de esconde-esconde com aqueles que querem sufocar mentes e imaginações, obrigando-os ao conformismo.
Foi na antiguidade persa que se desenvolveu a ideia de "ketman"-a prática de, por trás de um semblante de conformismo, preservar a autonomia de um pensador livre, dizendo uma coisa e fazendo outra. Há uma história conhecida pelos iranianos de um racionalista que absorveu os dogmas do xiismo tão completamente que os mulás confiavam nele até o momento em que ele afastou o véu e se revelou um pensador lógico sem interesse algum no islã.
Mas é claro que esse tipo de dissimulação é exaustivo. Desde o ano passado, venho observando o trabalho desta artista tornar-se mais violento. Algumas de suas telas recentes retratam os muros de Teerã cobertos de slogans políticos com a ascensão do movimento Verde. Manchas de tinta vermelha evocam o sangue que salpicou os muros; as camadas de repressão são captadas nas pinceladas espessas; cores primárias se enfrentam em justaposição violenta.
Agora, ela decidiu emigrar para o Canadá, dentro de um êxodo de talentos que estão deixando o Irã, enquanto o país continua a trair sua civilização grandiosa.
"É triste", ela me disse, "mas não posso mais desperdiçar minha vida. Não temos mais espaço para pensar, para respirar."
A tragédia é que a República Islâmica não poderá durar para sempre. Mesmo o "ketman" deixou de funcionar como proteção. Em 1979, o aiatolá Ruhollah Khomeini prometeu liberdade a seu povo, mas a tirania secular deu lugar a uma teocracia repressiva, deixando os iranianos ainda sedentos do governo representativo que vêm buscando há mais de um século.


Envie comentários para intelligence@nytimes.com.


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