São Paulo, segunda-feira, 28 de março de 2011

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

INTELIGÊNCIA/ERHARD STACKL

Lições de um ditador

Líderes europeus se aproximaram dos ditadores

Viena
Poucos dias antes de uma coalizão de potências ocidentais e árabes começarem os ataques aéreos para defender os rebeldes da Líbia, um revelador vídeo no YouTube se tornou viral. Ele mostra o coronel Muammar Gaddafi, tirano da Líbia, apertando as mãos e abraçando estadistas europeus como Nicolas Sarkozy, presidente da França, Tony Blair, ex-premiê da Grã-Bretanha, e, com especial carinho, o primeiro-ministro da Itália, Silvio Berlusconi. O vídeo era acompanhado pela melosa canção "Save Your Kisses for Me" [guarde seus beijos para mim].
Não muito tempo atrás, vários líderes europeus pregavam valores democráticos aos domingos e, durante a semana, faziam vultosos negócios com o ditador. Agora, numa guinada espetacular, eles proibiram o embarque de armas para Gaddafi e congelaram seu patrimônio nos bancos europeus. Vendo que isso não iria dissuadir o governante líbio de bombardear seu próprio povo, as principais potências europeias -com exceção da Alemanha- se engajaram numa ação militar antes mesmo de os EUA declararem que estavam prontos para aderir.
Em contraste com conflitos anteriores, especialmente o do Iraque em 2002, os europeus continentais não insistiram no uso do "soft power" ou de soluções negociadas. Com a ajuda americana, eles esperam salvar os rebeldes da Líbia de serem eliminados pela máquina militar de Gaddafi.
A aventura na Líbia também salienta uma mudança no equilíbrio de poder europeu. A Alemanha, sempre decisiva quando foi a saúde do euro que esteve em jogo, ficou à margem. A França se lançou ao centro do palco.
Poucos meses atrás, o governo francês parecia alheio às mudanças fundamentais que estavam acontecendo no Norte da África. Depois dos infelizes comentários do chanceler francês sobre os manifestantes pró-democracia na Tunísia e da oferta de auxílio ao então ditador Zine el Abidine Ben Ali, Paris despertou para os apelos por democracia no Norte da África. Quando a Líbia explodiu, a França foi o primeiro país a reconhecer o governo provisório líbio, e Sarkozy tomou a iniciativa de impor uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia. Se essa postura vier a reverter a maré na Líbia, Sarkozy poderá assumir o protagonismo da política europeia. Como envolvimentos militares são muito impopulares entre o eleitorado alemão, a chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel não teve escolha senão agir como coadjuvante do governo francês.
Berlusconi cedeu à pressão interna e externa e fez talvez a mais radical das guinadas. A Itália, onde a Líbia tem quase US$ 10 bilhões investidos, bloqueou esse patrimônio. Berlusconi chegou até a oferecer bases militares da Sicília à recém-formada coalizão. No passado, Berlusconi lidava com Gaddafi por necessidade. Além de interesses petrolíferos importantes, ele tinha um acordo com a Líbia para conter o afluxo de milhares de imigrantes pobres da África em direção à Europa, via Itália.
A "Realpolitik" tem guiado a política da Europa para o Norte da África, mas talvez seja hora de rever essa estratégia. Líderes democratas se aproximaram de ditadores porque sentiam que estes ofereciam a melhor oportunidade de estabilidade na região, que serviriam de contrapeso ao fundamentalismo islâmico violento, e que, com o tempo, introduziriam reformas. Os jovens da região, que têm boa formação e reivindicavam uma vida melhor e mais livre, foram amplamente ignorados.
Hans-Dietrich Genscher, o venerado ex-ministro de Relações Exteriores da Alemanha, disse que governantes como o egípcio Hosni Mubarak, a quem ele tinha como amigo, não fizeram jus às expectativas e não conseguiram modernizar seus países.
Quase no fim da Guerra Fria, Genscher teve um papel importante na queda do Muro de Berlim, ao negociar com as ditaduras no império soviético e apoiar os movimentos democráticos. Agora, o Ocidente não deve fazer ouvidos moucos aos apelos por liberdade no mundo árabe, disse Genscher. Na opinião dele, seria arrogante supor que algumas nações estão despreparadas para o regime democrático.
O extremismo religioso e os conflitos étnicos podem ser ameaçadores no futuro. Mas uma coisa é certa: a cumplicidade com os ditadores provou-se errada não só em termos morais. Não importa quão firme pareça um ditador, a vontade do povo não pode ser deixada de lado.
Os cálculos que orientam a "Realpolitik" precisam ser revistos, para que as vozes dos adversários das ditaduras sejam consideradas legítimas. A queda de regimes autoritários no mundo árabe revela que seus fundamentos eram uma miragem.
Melhor se preparar agora para o próximo vulcão a entrar em erupção popular pela democracia, o que pode ser possível mesmo sob o regime brutal do Irã.

Erhard Stackl é ex-editor-executivo do "Der Standard", de Viena, e autor do livro "1989 - The Falling of Dictatorships" [1989 - a queda das ditaduras].

Escreva para intelligence@nytimes.com



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