São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

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Um novo elenco para entreter o público

Em tempos de crise, a gula é mais grave que a luxúria

Por ALESSANDRA STANLEY

Sinto falta do SEXO.
Os EUA estão absortos numa orgia de escândalos - uma narrativa burlesca de gula, clientelismo e corrupção apresentada 24 horas por dia na TV a cabo, com vilões que bem poderiam ser personagens do romance "Bleak House", de Charles Dickens (até mesmo seus nomes, Madoff e Blagojevich, têm um quê de dickensiano, como Skimpole ou Pardiggle).
As histórias mais escabrosas veiculadas na mídia não giram em torno de amantes ou prostitutas, mas de dinheiro. É o décimo aniversário do Monicagate e da tentativa de impeachment do presidente Clinton, mas nem mesmo a Fox News se animou a falar muito sobre o vestido manchado de sêmen. A recessão já fez muitas vítimas, mas uma das menos comentadas é a queda do escândalo sexual suculento. Parece que faz séculos que alguém dava alguma importância ao caso extraconjugal do ex-pré-candidato à presidência John Edwards. O acordo de divórcio de Madonna não passa de uma nota de rodapé.
Em tempos normais, o sexo e os erros de conduta das celebridades constituem os principais assuntos que desviam nossa atenção dos desastres naturais e das notícias sérias. Os economistas têm muitas maneiras de definir uma recessão econômica, mas o indicador mais claro talvez seja o "fator escândalo": quando a gula passa à frente da luxúria, e as fraudes se tornam mais fascinantes que a infidelidade, é seguro afirmar que uma recessão já se instalou.
Frente à crise econômica, é mais fácil -e, estranhamente, mais tranqüilizador- voltar nossa atenção a maracutaias e subornos como os que sempre existiram. Por mais grotescos e superdimensionados sejam, esquemas Ponzi (de investimentos com atraentes rentabilidades, abonadas com o dinheiro fornecido por novos investidores) e revelações de impropriedades na máquina política de Chicago são escândalos que reconfortam: são suficientemente chocantes, mas não tão estranhos e inusitados que os contribuintes normais tenham medo de olhar para eles. E todos esses malfeitos rocambolescos praticamente expulsaram da tela as redes de pornografia virtual e as notícias de rompimentos entre casais de Hollywood. Para exemplificar: o programa "Dateline", da rede NBC, deixou de perseguir pedófilos que atraem crianças pela internet para caçar credores que atraíram consumidores crédulos, convencendo-os a contrair hipotecas que não tinham condições de pagar.
Antes mesmo de serem levados aos tribunais, Bernard Madoff (acusado de presidir sobre um esquema Ponzi de US$ 50 bilhões) e o governador de Illinois, Rod Blagojevich (acusado de tentar vender a vaga do presidente eleito Barack Obama no Senado), são dois símbolos da roubalheira e da corrupção nos tempos de crise, mas não podem ser vistos como bodes expiatórios.
Eles funcionam sobretudo como figuras que tomam o lugar dos vilões sexuais: as transações ilícitas das quais são acusados despertam o interesse do público do mesmo modo que antes faziam as escapadas de Britney Spears e Paris Hilton.
Mas não faltam outros transgressores pecuniários que fascinam os espectadores, especialmente uma reportagem recente da MSNBC baseado numa fofoca postada no site The Daily Beast, sobre uma saída recente para fazer compras na Hermès de Kathleen Fuld, esposa de Richard Fuld, o executivo-chefe caído em desgraçada do agora extinto Lehman Brothers (de acordo com a reportagem, suas compras incluíram três xales de cashmere de US$ 2.225 cada).
A reportagem da MSNBC sugeriu que Kathleen Fuld e pessoas como ela começaram a pedir que as lojas coloquem os artigos de luxo que compram em sacolas de compras simples, sem identificação da grife, para fugir do escárnio de pessoas na rua. Se for verdade, elas têm razão para agir assim: no clima atual, nomes como Hermès e Prada ganharam conotação tão pecaminosa que até mesmo personalidades da mídia se sentem na obrigação de desmentir qualquer conhecimento deles.
Depois da transmissão da reportagem sobre as "compras secretas", a âncora da MSNBC Tamron Hall corrigiu a pronúncia da palavra "Hermès" pelo repórter, mas depois apressou-se a desmentir qualquer conhecimento em primeira mão da loja.
O ressentimento de classe é a nova moda. Até pouco tempo atrás, drogas e divórcio eram os temas comuns das fofocas relacionadas aos Kennedy. Hoje Caroline Kennedy virou alvo de ataque dos tablóides, mas a acusação feita a ela é de presunção: mesmo na TV, os comentaristas ironizam abertamente sua turnê pelo interior do Estado de Nova York e reclamam que ela age com arrogância aristocrática quando pleiteia um cargo público, como se tivesse direito inato a ele. (E não é injusto notar que seu pedido por uma vaga no Senado vem acompanhado de um leve cheiro de política ao estilo de Chicago -ou seja, de "blagojevichismo", mas cometido com mais educação.) É claro que tudo isso não vai durar para sempre. As revelações de falcatruas financeiras vão perder seu caráter de novidade, corruptos menos espalhafatosos vão subir ao palco, e logo os escândalos sexuais voltarão (idealmente, com um executivo-chefe de Wall Street esbaldando-se com prostitutas em seu jatinho prestes a ser retomado, a caminho de um resort de luxo em St. Barts, prestes a ir à falência).
Por enquanto, porém, os contribuintes ainda estão furiosos com reguladores da Comissão de Valores Mobiliários que deixaram de cumprir seus papéis; eles invejam os executivos das empresas socorridas que estão ganhando bônus polpudos. Pessoas comuns se revoltam com a gula de executivos da AIG tomando vinhos caríssimos enquanto a empresa afunda na falência e se ofendem com diretores automotivos soberbos que vão ao Congresso de jatinho particular para pedir esmolas dos contribuintes.
O sétimo pecado capital está perdendo sua relevância.


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