São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

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Um negócio que dependia de subornos

Por SIRI SCHUBERT e T. CHRISTIAN MILLER

MUNIQUE - Reinhard Siekaczek estava meio dormindo quando a campainha tocou naquela manhã, dois anos atrás. Espiou pela janela do quarto, desceu as escadas correndo e abriu a porta. Diante dele havia seis policiais e um promotor. Naquele instante, Siekaczek, ex-contador da Siemens AG, gigante alemã do setor de engenharia, sabia que sua vida secreta chegara ao fim. "Eu estava esperando por vocês", disse ele.
Para entender como a Siemens acabou pagando US$ 1,6 bilhão em multas, a maior penalidade por subornos na história corporativa moderna, vale a pena se debruçar sobre a história de Siekaczek, uma das várias pessoas que manipulavam uma enxurrada de pagamentos para funcionários bem-posicionados mundo afora.
Siekaczek diz que, entre 2002 e 2006, supervisionou um orçamento anual de propinas de US$ 40 milhões a US$ 50 milhões. Esses pagamentos, segundo ele, eram vitais para manter a competitividade da Siemens no exterior, especialmente na subsidiária dele, voltada para equipamentos de telecomunicações.
A Siemens não é nem de longe o único gigante corporativo sob escrutínio, pois vários países estão coibindo as práticas de empresas como Daimler e Johnson & Johnson. Mas o caso da Siemens é notável por seu fôlego, pelas quantias envolvidas e pelo zelo administrativo com que a empresa usava o suborno para garantir contratos.
É também o modelo de algo que já foi extremamente raro: a cooperação internacional entre as autoridades.
Os promotores alemães abriram a investigação em 2005. Autoridades americanas se envolveram em 2006, porque as ações da Siemens são comercializadas na Bolsa de Nova York. Em um acordo judicial com o governo dos EUA, a Siemens se declarou culpada por violar a Lei contra Práticas Estrangeiras Corruptas, que proíbe o pagamento de subornos no exterior.
A unidade de Siekaczek liberou mais de US$ 800 milhões dos US$ 1,4 bilhão em pagamentos ilegais que a Siemens fez entre 2001 e 2007, o que inclui US$ 5 milhões para conseguir um contrato de telefonia celular em Bangladesh e US$ 12,7 milhões na Nigéria.
Na Argentina, outra subsidiária pagou pelo menos US$ 40 milhões em subornos para obter um contrato de US$ 1 bilhão para confeccionar carteiras de identidade. Em Israel, a empresa distribuiu US$ 20 milhões para construir usinas elétricas. Na Venezuela, foram US$ 16 milhões numa licitação para trilhos de trens urbanos. E, no Iraque, US$ 1,7 milhão para o ditador deposto Saddam Hussein e seus amigos.
A Siemens começou a pagar propinas muito antes de se valer dos talentos contábeis de Siekaczek. Depois que a Segunda Guerra Mundial deixou a empresa esmagada, ela se voltou para os mercados de países menos desenvolvidos, e a corrupção se tornou uma técnica de vendas confiável.
"O suborno era o modelo de negócios da Siemens", disse Uwe Dolata, porta-voz da associação alemã de investigadores criminais federais.
No passado, subornar uma autoridade estrangeira não era crime na Alemanha. Em fevereiro de 1999, o país aderiu à convenção internacional contra tal prática. A Siemens, em vez de cumprir a lei, criou um inofensivo sistema interno que pouco se empenhou em punir os infratores, segundo documentos judiciais. Dentro da Siemens, os subornos eram chamados pela sigla "NA" - de "nützliche Aufwendungen", ou "dinheiro útil".
Diante da possibilidade de serem flagrados, os gestores do grupo de telecomunicações decidiram dificultar a detecção das propinas.
Recorreram então a Siekaczek, conhecido por sua honestidade pessoal e por sua profunda lealdade à empresa. "Todos sabíamos que o que fazíamos era ilegal", disse ele. "O que importava era que a pessoa encarregada fosse estável e não se desviasse."
Siekaczek começou transferindo dinheiro para Liechtenstein e a Suíça, onde as leis de sigilo bancário garantiam maior cobertura. Ele também contatou um laranja na Suíça, que abriu empresas de fachada para ocultar o rastro do dinheiro da Siemens.
O esquema começou a desabar quando investigadores de vários países passaram a examinar transações suspeitas. Promotores da Itália, de Liechtenstein e da Suíça pediram ajuda a seus colegas alemães, que decidiram agir.
Em 15 de novembro de 2006, enquanto a polícia batia à porta de Siekaczek, outros agentes, em toda a Alemanha, vasculhavam a sede da Siemens e as casas de vários executivos.
A Siemens, afinal, terá de arcar com mais de US$ 2,6 bilhões: US$ 1,6 bilhão em multas e custas judiciais e mais de US$ 1 bilhão para investigações internas e reformas. Mas autoridades americanas e alemãs dizem que as investigações contra a empresa prosseguem.
Siekaczek foi condenado a dois anos de prisão, com direito a sursis, e a uma multa de US$ 150 mil. Ele tem dúvidas sobre as conseqüências do caso Siemens. Afinal, disse ele, o suborno e a corrupção continuam disseminados.
"As pessoas só vão dizer a respeito da Siemens que ela deu azar e violou o 11° Mandamento. O 11° Mandamento é: ‘Não serás apanhado’."


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