São Paulo, segunda-feira, 30 de agosto de 2010

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TENDÊNCIAS MUNDIAIS

Libertado, réu injustiçado não quer mais se calar

No Japão, um improvável ativista antiabusos policiais

Por MARTIN FACKLER

ASHIKAGA, Japão - Numa manhã de dezembro de 1991, a tranquila existência de Toshikazu Sugaya em Ashikaga, pacata cidade ao norte de Tóquio, terminou abruptamente com batidas na sua porta.
Era a polícia. Queria ouvir Sugaya, então com 45 anos, motorista de ônibus escolar, divorciado e sem amigos, a respeito do terrível homicídio de uma menina de quatro anos, em 1990.
Após 13 horas de interrogatório, durante as quais Sugaya diz ter sido alvo de gritos e chutes nas canelas, ele lacrimosamente confessou esse assassinato e a morte de duas outras meninas. Acabou condenado por um homicídio, à prisão perpétua.
Mas, no ano passado, promotores admitiram que a confissão foi obtida sob coação e que um exame de DNA usado como prova estava errado. Sugaya foi solto, e um tribunal posteriormente o inocentou.
A revelação de que um inocente havia passado mais de 17 anos na cadeia causou no Japão uma consternação ainda maior que a sua condenação como "serial killer".
Aos 63 anos, ele se tornou uma personalidade nacional e talvez o mais inflamado crítico das confissões forçadas no país -um problema recorrente no Japão. Foi autor ou coautor de três livros, um deles intitulado "Falsamente Condenado", e percorre o Japão dando palestras.
"Eu digo às pessoas que não acreditem na polícia", disse Sugaya, um homem franzino, com o rosto quase escondido atrás de grandes óculos de aros finos. "Veja o que fizeram comigo."
Com os ombros arqueados e trejeitos que lembram um animal acuado, Sugaya parece um improvável paladino no combate aos abusos de poder que fizeram dele um assassino em série.
Ele contou ter conhecido outros que se dizem vítimas de falsas acusações. Segundo ele, o desejo de ajudar essas e outras pessoas foi uma das razões para aceitar a recente notoriedade.
Antes do seu drama, Sugaya se descrevia como um homem tímido, de poucas palavras. Após um casamento que durou só três meses, ele dividia seu tempo entre viver com seus pais e passar os fins de semana sozinho numa casa alugada.
Sem que ele soubesse, a polícia passou um ano seguindo Sugaya, até sua prisão.
Uma testemunha havia dito às autoridades que Sugaya estivera numa casa de "pachinko" (espécie de fliperama) mais ou menos na hora em que a vítima de quatro anos, Mami Matsuda, foi vista nesse local pela última vez.
Após sua confissão inicial e a subsequente prisão, Sugaya disse ter passado semanas tramando histórias cada vez mais complexas a respeito de como assassinou Mami e duas outras meninas que haviam morrido na década de 1980.
Sugaya disse que a pergunta que mais ouve hoje em dia é por que confessou tão rapidamente crimes que não cometeu. Descrevendo-se como inseguro e "excessivamente medroso", ele afirmou que a sua força de vontade aparentemente desabou depois de passar horas ouvindo policiais gritando com ele.
A polícia admite não ter notado as discrepâncias gritantes entre os relatos inventados de Sugaya e as provas forenses sobre os crimes. O assassino nunca foi achado, e já não poderia ser julgado, pois, pela lei japonesa, os homicídios prescreveram.
Akira Kitani, ex-juiz e hoje professor de direito da Universidade Hosei, em Tóquio, disse que a libertação de Sugaya gerou movimentos mais amplos pela repetição de julgamentos em vários casos similares, inclusive num latrocínio de 1967 em que dois homens foram aprisionados com base apenas em confissões que eles depois desmentiram.
Sugaya disse que a parte mais difícil da sua experiência tem sido se reconciliar com o que perdeu durante a prisão. Seu pai, vendedor de remédios, morreu duas semanas após sua detenção, aparentemente pelo choque, segundo ele.
Sua mãe se recusou a visitá-lo na prisão, e certa vez disse à polícia que desejava que o filho fosse executado e "mandado para casa numa caixa". Ela morreu há três anos, sem ver Sugaya inocentado.
"Eu gostaria de poder ter explicado a ela o que realmente aconteceu", disse Sugaya, com a voz embargada.


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