São Paulo, segunda-feira, 31 de agosto de 2009

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Carol Kaesuk Yoon
Ensaio


A arte de nomear o mundo


BEIJA-FLORES do livro ‘‘Kunstformen der Natur’’ ("Formas artísticas da natureza", 1900), de Ernst Haeckel, zoólogo alemão e um dos mais renomados pintores de história natural do século 19, considerado o autor da primeira árvore evolutiva detalhada de organismos reais

Apesar da modernidade da taxonomia, com o uso de sequências de DNA, de uma sofisticada teoria evolutiva e de supercomputadores para ordenar e nomear todas as formas de vida, os empregos para taxonomistas continuam em constante declínio. As coleções de história natural, cruciais para esse trabalho, estão fechadas ou largadas.
A ordenação e nomeação da vida não é uma ciência esotérica. As últimas décadas trouxeram estudos que mostram que selecionar e batizar o mundo natural é uma atividade humana universal, arraigada e fundamental para compreender o mundo vivo, bem como nosso lugar nele.
Os antropólogos foram os primeiros a reconhecer que a taxonomia poderia ser mais do que a ciência oficialmente fundada pelo botânico sueco Carl Linnaeus no século 18. Estudando como não cientistas ordenam e nomeiam a vida, criando as chamadas taxonomias populares, os antropólogos começaram a perceber que, quando as pessoas de todo o mundo criam grupos ordenados e dão nomes às coisas vivas ao seu redor, elas seguem padrões altamente estereotipados, aparentemente guiando-se de modo inconsciente por um conjunto de regras não escritas.
Por exemplo, o povo ilongot, das Filipinas, batiza orquídeas selvagens como partes do corpo —aqui florescem coxas, ali unhas, acolá cotovelos. Os rofaifos, da Nova Guiné, classificam o casuar, uma ave gigante, como um mamífero. De fato, aparentemente há pouco espaço até para a concordância entre as pessoas, e ainda menos um conjunto de regras universalmente seguidas. Mais recentemente, porém, semelhanças subjacentes começaram a aparecer.
Cecil Brown, antropólogo da Universidade do Norte de Illinois (EUA) que já estudou taxonomias populares em 188 línguas, concluiu que as pessoas reconhecem repetidamente as mesmas categorias básicas, incluindo peixes, aves, cobras, mamíferos, “wugs” (significando vermes e insetos), árvores, trepadeiras, ervas e arbustos. Os “wugs” não são um grupo coeso, do ponto de vista evolutivo, ecológico ou de qualquer outro tipo. Mesmo assim, as pessoas repetidamente os reconhecem e nomeiam.
Da mesma forma, as pessoas consistentemente usam epítetos com duas palavras para designar organismos específicos dentro de um grupo maior, apesar de haver infinitos métodos potencialmente mais lógicos. É tão familiar que mal percebemos. Em português, entre os carvalhos distinguimos o carvalho americano; entre os ursos, os ursos cinzentos.
Quando os maias, familiarizados com os javalis, conheceram os porcos espanhóis, apelidaram-nos de “javalis de aldeia”. Usamos nomes duplos para nós também: Sally Smith ou Li Wen. Mesmo os cientistas estão vinculados a esta prática, insistindo nos nomes latinos binomiais para as espécies.
A prova mais surpreendente de quão arraigada é a taxonomia vem de pacientes que, por acidente ou doença, sofreram traumas cerebrais. Veja o caso do universitário a quem pesquisadores britânicos se referem como J.B.R., vítima de um inchaço cerebral causado por herpes.
Ao se recuperar, ele era capaz de reconhecer objetos inanimados —como lanterna, bússola e chaleira—, mas não conseguia reconhecer coisas vivas —como canguru e cogumelo. Médicos de todo o mundo já encontraram pacientes com a mesma dificuldade. Mais recentemente, cientistas que estudam esses pacientes disseram ter notado lesões numa região do lóbulo temporal, levando à hipótese de que poderia existir uma parte específica do cérebro dedicada à taxonomia.
Sem a capacidade de ordenar e nomear a vida, uma pessoa simplesmente não sabe como viver no mundo, como entendê-lo.
Estamos, todos nós, abandonando a taxonomia, a ordenação e nomeação da vida. Estamos deliberadamente nos tornando J.B.R., perdendo a capacidade de ordenar e nomear e, portanto, perdendo uma conexão com o mundo vivo e um lugar nesse mundo.
Não surpreende que tão poucos de nós consigamos ver o que há por aí. Mudar tudo isso acaba sendo fácil. Encontre um organismo, qualquer organismo, e entenda seu formato, cor, tamanho, textura, cheiro e som. Então encontre um nome para ele. Descubra o nome científico, um dos incontáveis nomes populares, ou invente um.
Fazer isso é mudar tudo, inclusive a si próprio. Porque, uma vez que você começa a notar os organismos, uma vez que você tem um nome para bichos, aves e flores específicos, não consegue deixar de ver a vida e a ordem que nela existe, bem onde sempre esteve, ao seu redor.


Adaptado de “Naming Nature: The Clash Between Instinct and Science”, de Carol Kaesuk Yoon


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