São Paulo, segunda-feira, 31 de agosto de 2009

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Restos de comida, um tema sempre fresco


Talvez sejamos, no fundo, aquilo que não comemos

Por HENRY ALFORD

Como muitas coisas que ficam na intersecção entre a obrigação e o prazer em potencial, os restos de comida são fonte de emoções complicadas. Pergunte a Diana Abu-Jaber, autora de um livro de memórias narrado por meio da comida, “The Language of Baklava” (“A linguagem do baclavá”).
Na festa de casamento que deu na sua casa, em 2001, dois vizinhos lhe trouxeram como presente um pote de conserva com um vistoso laço vermelho. “Parecia conter pedaços de algum tipo assustador de bolo amarronzado, inchado e escorrido”, disse Abu-Jaber. Vinha com um bilhete explicativo: “Este meio filão de pão de chocolate com abobrinha foi um experimento (fracassado). Mas talvez você goste. Feliz casamento!”.
“Até hoje, nos perguntamos o que pode ter dado neles para entregar aquilo para nós”, disse ela.
Numa crise econômica, os restos de comida representam nossos esforços em favor da parcimônia. A frugalidade pode ser uma virtude, mas não há como negar que, quando se trata dos restos, as pessoas ficam um pouco malucas. Em alguns casos, trata-se de uma vigorosa tentativa de esgotar o que há.
Clément Gaujal, funcionário da Nissan criado em Paris, conta que sua mãe tinha uma tênue compreensão sobre o que seria o tamanho de uma panela de lentilhas e acabava servindo seus restos por até quatro dias seguidos. Então, ela comprou um caderninho e começou um diário das lentilhas: ela, o marido e os quatro filhos registrariam como as lentilhas eram preparadas a cada refeição, quanto os membros da família comiam, o que se conversava durante a refeição e, naturalmente, o percentual que sobrava.
O jeito de lidar com as sobras pode dizer muito sobre quem somos. Como escreveu Marvalene Hughes, hoje reitora da Universidade Dillard (Nova Orleans), no seu ensaio “Soul, Black Women and Food” (“‘Soul’, mulheres negras e comida”), uma razão para a importância das sobras na cultura negra norte-americana é o fato de que muitos alimentos rotulados como “soul food”, como a carcaça de frango, o “ham hock” (parte inferior do pernil de porco) e a rabada, terem sido no passado alimentos que os senhores brancos julgavam indesejáveis e davam aos seus escravos. “A mulher negra, voltada para a sobrevivência, confia na sua criatividade para ‘fazer algo do nada’”, escreveu Hughes. “Ela adquiriu a capacidade única de sobrevivência para cozinhar (e, portanto, usar) todas as partes de tudo.”
Para onde, no que tange aos restos, rumamos como cultura? Como notou uma reportagem da revista “Time” no ano passado, os antigos humanos armazenavam alimentos em cavernas frias e escuras; os gregos e romanos recolhiam neve e gelo das montanhas. Até o século 19, a entrega de gelo para caixas frigoríficas era comum nos EUA; nas décadas de 1920 e 30, geladeiras começaram a aparecer em muitos lares norte-americanos; nas décadas seguintes, surgiram o Tupperware e o filme plástico; os anos 70 trouxeram os primeiros micro-ondas domésticos a preços acessíveis.
O fato de alguns alimentos, mas não todos, serem mais saborosos no dia seguinte ao preparo não parece simplificar as coisas.
Como diz Abu-Jaber: “Muitos pratos melhoram com o tempo, e os restos podem ser o mais doce tipo de oferta. Eles implicam que você compartilha uma amizade caseira, que você [convidado] é parte da família. Mas às vezes os restos são apenas isso —a coisa que ninguém quis comer da primeira vez”.


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