São Paulo, segunda-feira, 31 de agosto de 2009

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Saudades das fogueiras de Bagdá

Por STEVEN LEE MYERS

BAGDÁ — Nossa refeição —uma carpa de mais de 3 kg— saiu de um tanque turvo e caiu no chão de concreto.
O, digamos, subchefe de cozinha levantou um bastão de madeira e esmagou a cabeça, mas sem matar a criatura, já que ela continuava se debatendo quando a faca mergulhou pelas guelras e ao longo da espinha vertebral.
Os iraquianos são peculiares quando se trata de escolher seu peixe —preferem os machos, por exemplo— e ver sua agonia, por uma simples razão: ele precisa estar o mais fresco possível e pode ainda ter espasmos ao ser assado em uma fogueira, num estilo chamado masquf, há séculos associado a Bagdá.
“[Os clientes] querem exatamente do jeito tradicional”, disse Munir Khadim, dono do restaurante Al Baghdadi, num trecho do rio Tigre onde provavelmente os peixes são assados mais ou menos da mesma forma desde os primeiros dias da civilização. “É parte do folclore iraquiano”, acrescentou.
Agora, como o próprio Iraque, o masquf ressurgiu dos dias mais sombrios da violência, reocupando seu local na culinária e na cultura locais.
No último ano e meio, uma dúzia de antigos restaurantes masquf reabriu no parque à beira-rio ao longo da rua Abu Nuas, um bulevar arborizado que passou anos, depois da invasão norte-americana de 2003, como terreno baldio, como base de lançamentos para ataques e, finalmente, como acampamento militar.
“Você nunca vai obter o mesmo sabor de qualquer outro tipo de peixe no Iraque ou fora do Iraque”, disse Abu Abdulla, funcionário do Ministério da Defesa que recentemente comia e tomava cerveja num restaurante chamado Al Balaam.
O restaurante de Khadim, um dos maiores ao longo da Abu Nuas, passou quatro anos fechado, enquanto seu dono fugiu para a Romênia em busca de trabalho.
Khadim, que é engenheiro mecânico, abriu um negócio no exílio, até que a melhora na segurança o convenceu a voltar, em 2008, para aquilo que ele qualifica como a sua paixão.
O masquf é um método simples de assar peixe, embora várias pessoas que fizeram disso sua profissão —sempre homens— insistam que o seu é o melhor.
Depois de eviscerado, o peixe é aberto num formato oval e empalado por dois bastões de madeira, que são fincados no chão à beira de uma fogueira redonda, de modo que sua carne fique virada para as chamas, alimentadas pela madeira de árvores frutíferas —maçã, laranja ou romã, dependendo, ao que parece, da disponibilidade e do gosto.
O termo em si é uma gíria iraquiana derivada da palavra árabe para “teto” —ou seja, o peixe formando uma cobertura sobre as chamas. Li que os iraquianos saboreiam o peixe com especiarias, mas o único ingrediente que sempre vi é sal. O segredo está mesmo em como assar. O peixe fica suspenso num círculo, a uma distância suficiente do fogo para não torrar, e é assado muito lentamente, até que a carne fique marrom e crocante por fora, mas ainda branca e suculenta por dentro. Ele, então, é retirado das estacas e colocado diretamente sobre as brasas, para que sua pele carbonize.
O peixe costuma ser servido com pão pita e saladas, iogurte com pepino e picles, frutas e legumes em molho de mostarda. Nunca é servido com talheres.
Considera-se que dá sorte comê-lo às quartas-feiras. Dizem que tem qualidades medicinais, até poderes afrodisíacos, especialmente as vísceras, que podem ser assadas em uma panela de ferro. É um prato para ocasiões especiais, como casamentos e nascimentos.
A nostalgia quase certamente influi no seu apelo, já que o masquf evoca uma era mais simples, de uma Bagdá que hoje em dia só existe na lembrança.
Faisal Habib, funcionário público que comia no Al Balaam, lembra-se de ter feito uma refeição na Abu Nuas pela primeira vez em 1980. “Na época era diferente”, disse ele, acrescentando que os melhores cozinheiros do masquf fugiram ao exterior durante a guerra. “O sabor era muito melhor.”


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