São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

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OMBUDSMAN

Grampos e peixes

BERNARDO AJZENBERG

Raras vezes uma reportagem concentrou tantas questões sobre jornalismo quanto a da "Veja" da semana passada sob o título "Os bastidores de uma guerra". O que trazia esse texto?
Com base na transcrição de gravações ao que tudo indica ilegais, o material revelava:
1) a articulação "suja" de um combate a um rival no campo dos negócios de telefonia celular; 2) o uso da imprensa por empresários para atacar opositores; 3) a tentativa de "acertos" entre um órgão de comunicação e autoridade política.
Os protagonistas: o empresário Nelson Tanure, dono do "Jornal do Brasil", aliado da canadense TIW na disputa com o banco Opportunity (Daniel Dantas) pelo poder na holding de telefonia celular Telpart (Telemig e Telenorte); seu assessor Paulo Marinho; e o jornalista Ricardo Boechat, até então de "O Globo". O político? Jader Barbalho.
Nas conversas,Tanure e Marinho tramam contra Dantas; Marinho e Boechat se acertam quanto a uma matéria anti-Opportunity que sairia no dia seguinte (16 de abril); e, no terceiro diálogo, Tanure e Marinho conferem os resultados de conversas não só políticas, segundo a revista, entre o "JB" e o presidente do Senado.

O uso do grampo
A primeira questão polêmica se refere à própria publicação da reportagem: é legítimo usar grampo como material jornalístico?
Apesar da nociva banalização desse recurso nos últimos anos, apesar do risco de manipulação a que se sujeita a imprensa ao adotá-lo, a resposta é "sim", com ressalvas: o assunto tem de ter interesse público, novidade e relevância; a gravação precisa ter autenticidade comprovada; a edição deve garantir pluralidade.
Em vez de tecer uma regra contra os grampos ou a favor deles, o ideal é analisar caso a caso, com cautela e responsabilidade.
Vale mencionar a decisão tomada em 21 de abril pela Suprema Corte dos EUA, com base num caso de 1993 na Pensilvânia, a favor da divulgação, por uma rádio, de gravações clandestinas feitas por terceiros (não pela imprensa, claro).
O argumento básico dos juízes, ali, foi de que a liberdade de imprensa e o direito à informação -sendo o assunto de interesse público- deveriam prevalecer sobre o direito à privacidade.
É o caso da reportagem da "Veja". Embora se trate de batalha empresarial, as partes conflitantes (da área de comunicações) possuem interesse público.

Fonte e repórter
A segunda questão se refere à conduta de Boechat, um dos mais importantes colunistas do país.
O diálogo com Marinho mostra que ele submeteu seu texto -o qual adiantava uma manobra que seria feita pelo Opportunity no dia seguinte ao da publicação, em oposição a interesses do grupo TIW, ou seja, possuía caráter nitidamente unilateral-, lendo-o ao interlocutor.
No programa "Observatório da Imprensa", terça-feira, o jornalista admitiu que a matéria lhe fora enviada por Marinho e que ele (Boechat) apenas a "ajeitou".
Em sua defesa, argumentou que se trata de "ação corriqueira", que ler textos para fontes é parte do jogo, tendo sido exagerada a atitude de seu jornal de demiti-lo.
Que um repórter leia trechos a um especialista para checar uma declaração ou aspectos técnicos, vá lá. Mas não é o caso aqui.
E, se esse exemplo de Boechat é mesmo "corriqueiro" -texto programado para atender a interesse claro, mais a submissão de leitura ao interessado- , as coisas não vão bem nas redações.

Ameaça à independência
Ressalte-se uma terceira questão: a ameaça que a crescente fusão entre imprensa e grupos econômicos com interesses espalhados por diversas áreas representa para a independência editorial.
Ao editar na segunda-feira a sua "repercussão" da reportagem da "Veja", o "JB" mostrou como as coisas podem ser perigosas nesse terreno.
Em vez de destacar as ações de Tanure (seu proprietário) contra Dantas, objeto principal da reportagem, transformou Boechat -peixe pequeno em relação aos demais- e sua demissão do "Globo" no principal assunto.
Reproduziu o diálogo entre ele e Marinho, mas não os ocorridos entre Tanure e seu assessor. Para as conversações de sua cúpula com Jader, sobraram poucas linhas em pé de página.
O mínimo que se espera desse episódio é que os repórteres reflitam sobre métodos de apuração e relacionamento com fontes; e que os jornais atentem mais para a manipulação de que podem ser vítimas ou co-autores (até à revelia) ao lidar com a indústria de grampos e estimulá-la.
Para os leitores, a cada dia que passa ficam mais transparentes certas impropriedades cometidas pela imprensa -o que é bom e pode servir para melhorá-la.



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