São Paulo, domingo, 05 de janeiro de 2003

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Clone no palco

Sexta-feira a Folha publicou um editorial intitulado "Clone e moral" sobre o anúncio, feito no dia 27 pela empresa Clonaid, do nascimento do primeiro clone humano. Eis alguns trechos:
"O anúncio (...) tem pouco a ver com ciência (...) nenhum dos procedimentos que caracterizam a disciplina científica foi respeitado (...) (a empresa) não publicou nenhum artigo em nenhuma revista respeitada. Preferiu procurar diretamente a imprensa leiga (...) deixou de apresentar provas (...) não chegou nem mesmo a informar o local onde o bebê, chamado de Eva, teria nascido (...) a Clonaid não está fazendo ciência, mas antes criando um fato para contestar a moral vigente e atrair para si publicidade. Vale lembrar que a Clonaid é ligada à exótica seita religiosa dos raelianos, para os quais a vida na Terra surgiu a partir da clonagem de extraterrestres".
Ante uma avaliação tão contundente e crítica sobre a credibilidade da fonte, é difícil entender por que o jornal deu tanto destaque e investiu tanto espaço na divulgação do anúncio na edição do sábado (28).
Dos principais diários do país, foi o único a lhe dedicar o alto da Primeira Página, com um quadro de seis colunas acima da manchete (veja ao lado).
Internamente, usou duas páginas, com dois artigos analíticos, amplo material iconográfico e didático, além da reportagem.
Nos EUA, o "New York Times" deu, na capa, apenas uma nota de pé de página, assim como o "Washington Post".

Espetáculo
Não se trata de credulidade ou de ingenuidade. Os textos são pontuados por inúmeras ressalvas quanto à autencidade do anúncio da Clonaid. Um deles, assinado pelo próprio editor de Ciência, Marcelo Leite, começa até mesmo por aí: "Se o anúncio dos exóticos raelianos for verdadeiro -e, mais do que isso, verificável de forma independente- , 26 de dezembro de 2002 entrará para a história da ciência como um dia sombrio".
Não foi desta vez, portanto, que a Folha abriu mão de seu saudável ceticismo.
O que está por trás, parece-me, do desproporcional destaque é o fato de que o jornal, mesmo ciente das insuficiências resumidas dias depois no editorial, acabou sucumbindo à lógica da notícia como espetáculo e como elo do "show business" -do qual nem a ciência escapa.
Após caracterizar o fato como "um deslize e tanto, dos maiores que já vi da empresa (Folha) há mais de 15 anos", um leitor lembrou, em e-mail ao ombudsman, que o anúncio, ironicamente, foi feito em Hollywood.

Cuidado
A questão, aqui, não é se no fim o evento se revelará um blefe ou um feito histórico incontestável, embora polêmico. Quanto a isso, a novela promete ser longa.
O que cabe perguntar é até que ponto havia, no momento do anúncio, elementos científicos capazes de justificar, num veículo como a Folha, tanto destaque -em especial no caso da capa- sem que isso significasse resvalar no sensacionalismo.
Os próprios textos e, depois, o editorial compõem, a meu ver, uma resposta negativa.
Não é fácil, claro, apreciar de imediato o alcance e as dimensões de um experimento ou de uma descoberta científica.
Em julho passado, por exemplo, comentei numa crítica interna que o jornal dera, na minha opinião, pouca ênfase para a revelação (noticiada com espalhafato pela revista científica "Nature") da descoberta, no Chade, do "mais velho ancestral humano", chamado de Toumai.
Em resposta, a editoria de Ciência observou na ocasião ter tomado "cuidado para evitar (na Folha) o "hype" criado pela "Nature" em torno do achado".
Entendo que, agora, em especial com o destaque na capa, faltou ao jornal justamente essa contenção, num caso de relevância ainda maior do que aquele.



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