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Clone no palco
Sexta-feira a Folha publicou
um editorial intitulado "Clone e
moral" sobre o anúncio, feito no
dia 27 pela empresa Clonaid, do
nascimento do primeiro clone
humano. Eis alguns trechos:
"O anúncio (...) tem pouco a
ver com ciência (...) nenhum dos
procedimentos que caracterizam a disciplina científica foi
respeitado (...) (a empresa) não
publicou nenhum artigo em nenhuma revista respeitada. Preferiu procurar diretamente a imprensa leiga (...) deixou de apresentar provas (...) não chegou
nem mesmo a informar o local
onde o bebê, chamado de Eva,
teria nascido (...) a Clonaid não
está fazendo ciência, mas antes
criando um fato para contestar
a moral vigente e atrair para si
publicidade. Vale lembrar que a
Clonaid é ligada à exótica seita
religiosa dos raelianos, para os
quais a vida na Terra surgiu a
partir da clonagem de extraterrestres".
Ante uma avaliação tão contundente e crítica sobre a credibilidade da fonte, é difícil entender por que o jornal deu tanto
destaque e investiu tanto espaço
na divulgação do anúncio na
edição do sábado (28).
Dos principais diários do país,
foi o único a lhe dedicar o alto
da Primeira Página, com um
quadro de seis colunas acima da
manchete (veja ao lado).
Internamente, usou duas páginas, com dois artigos analíticos,
amplo material iconográfico e
didático, além da reportagem.
Nos EUA, o "New York Times"
deu, na capa, apenas uma nota
de pé de página, assim como o
"Washington Post".
Espetáculo
Não se trata de credulidade ou
de ingenuidade. Os textos são
pontuados por inúmeras ressalvas quanto à autencidade do
anúncio da Clonaid. Um deles,
assinado pelo próprio editor de
Ciência, Marcelo Leite, começa
até mesmo por aí: "Se o anúncio
dos exóticos raelianos for verdadeiro -e, mais do que isso, verificável de forma independente-
, 26 de dezembro de 2002 entrará
para a história da ciência como
um dia sombrio".
Não foi desta vez, portanto,
que a Folha abriu mão de seu
saudável ceticismo.
O que está por trás, parece-me,
do desproporcional destaque é o
fato de que o jornal, mesmo
ciente das insuficiências resumidas dias depois no editorial, acabou sucumbindo à lógica da notícia como espetáculo e como elo
do "show business" -do qual
nem a ciência escapa.
Após caracterizar o fato como
"um deslize e tanto, dos maiores
que já vi da empresa (Folha) há
mais de 15 anos", um leitor lembrou, em e-mail ao ombudsman,
que o anúncio, ironicamente, foi
feito em Hollywood.
Cuidado
A questão, aqui, não é se no
fim o evento se revelará um blefe
ou um feito histórico incontestável, embora polêmico. Quanto a
isso, a novela promete ser longa.
O que cabe perguntar é até que
ponto havia, no momento do
anúncio, elementos científicos
capazes de justificar, num veículo como a Folha, tanto destaque
-em especial no caso da capa- sem que isso significasse
resvalar no sensacionalismo.
Os próprios textos e, depois, o
editorial compõem, a meu ver,
uma resposta negativa.
Não é fácil, claro, apreciar de
imediato o alcance e as dimensões de um experimento ou de
uma descoberta científica.
Em julho passado, por exemplo, comentei numa crítica interna que o jornal dera, na minha opinião, pouca ênfase para
a revelação (noticiada com espalhafato pela revista científica
"Nature") da descoberta, no
Chade, do "mais velho ancestral
humano", chamado de Toumai.
Em resposta, a editoria de
Ciência observou na ocasião ter
tomado "cuidado para evitar
(na Folha) o "hype" criado pela
"Nature" em torno do achado".
Entendo que, agora, em especial com o destaque na capa, faltou ao jornal justamente essa
contenção, num caso de relevância ainda maior do que aquele.
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