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São Paulo, domingo, 06 de abril de 2003

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OMBUDSMAN

Crueldades da guerra

BERNARDO AJZENBERG

Pelo menos cinco jornalistas já morreram (até o fechamento desta coluna) na cobertura da invasão do Iraque pelas forças da coalizão anglo-americana.
O último, o norte-americano Michael Kelly, colunista do diário "The Washington Post", sofreu quinta-feira à noite um acidente durante confronto ao sul do aeroporto de Bagdá.
Era um dos cerca de 600 correspondentes "encaixados", por um programa do Pentágono, no meio dos militares, no caso, a 3ª Divisão de Infantaria.
Sua morte aquece ainda mais a discussão sobre esse polêmico programa. Politicamente, é um desastre para os EUA -basta lembrar que o "Post" é um dos veículos de comunicação de prestígio internacional que mais abertamente apóia a guerra.
No domingo passado (30/3), o jornal israelense "Maariv" trouxe o relato de dois jornalistas israelenses e dois portugueses que se aproximaram de tropas norte-americanas no Iraque a partir do Kuait.
De acordo com o depoimento, eles foram humilhados, espancados, torturados e, depois, expulsos de volta para a fronteira. Título da reportagem: "Um pesadelo de 48 horas: presos pelos americanos."
São vários, também, os relatos dramáticos de repórteres "independentes", alguns, como publicou o diário francês "Le Monde" no dia 3, mendicando água, combustível e comida junto às tropas da coalizão.
Permanece obscuro, até agora, o caso de um jornalista da TV britânica ITN, veterano em reportagens de guerra, que teria morrido depois de cair do telhado de um hotel em Bagdá.
Some-se a esses exemplos um número ainda impreciso de profissionais de diferentes países desaparecidos ou detidos por militares ou milicianos iraquianos.
Tudo em pouco mais de duas semanas de um conflito que nem sequer atingiu o auge.

Segundo grau
A crueldade da guerra para com o direito à informação, porém, não se exprime só dessa forma nua e carnal -sem dúvida mais dolorida e trágica do que qualquer outra-, simplesmente eliminando jornalistas.
Num nível paralelo, indireto e bem mais amplo, essa crueldade precisa contaminar igualmente a própria produção jornalística, pois ela parte do princípio de que inexistem na atualidade campos de batalha reais sem os seus "espelhos" virtuais: a propaganda, a contra-informação, o blefe, mas também, do outro lado, a busca da informação fiel.
Ao prudentemente retirar de Bagdá os seus enviados especiais -por razões de segurança e de logística, como explicou na edição de terça-feira-, a Folha, único veículo brasileiro que mantinha jornalistas na capital iraquiana, assumiu-se, na prática, como vítima dessa espécie de crueldade de segundo grau da guerra.
Com isso, viu-se obrigada a inaugurar uma outra fase em sua cobertura do conflito no Golfo Pérsico, em pé de igualdade com os concorrentes no que se refere à enorme dependência em relação às agências internacionais e a material de articulistas ou jornais estrangeiros.

Reflexo imediato
Nos primeiros dias, desde a edição de quarta-feira, o reflexo foi imediato. O jornal sentiu o baque; teve dificuldades para produzir um noticiário nitidamente diferenciado.
Uma comparação entre as edições de quinta da Folha e do "Estado de S.Paulo", por exemplo, é significativa. Os dois cadernos especiais trazem na capa, como principal, a notícia da aproximação de Bagdá da coalizão, um texto específico sobre a queda de um helicóptero dos EUA e um mapa.
A segunda página, em ambos os casos, abre-se com a informação de que civis de Najaf teriam recebido os invasores de forma amistosa -entre outras coincidências editoriais, bem superiores às poucas diferenças.
A importante seção "Guerra de informação", reveladora das armadilhas criadas na guerra para a própria mídia, evaporou.
Até o momento, para dar um outro exemplo, o jornal foi incapaz de aglutinar numa reportagem consistente os fatores econômicos por trás dos desentendimentos políticos ou diplomáticos (dentro dos EUA, entre Europa e EUA e mesmo entre o Reino Unido e os EUA) no que se refere à "reconstrução" do Iraque.
Só na sexta-feira, procurando novos enfoques, a Folha expressou uma reação, ao noticiar com destaque a existência de críticas à violação de direitos humanos pelos dois lados envolvidos no conflito.

Contrapeso
Tal como aconteceu por ocasião dos atentados de 11 de setembro de 2001 e da guerra do Afeganistão, em 2002, a chance de o jornal se fazer de novo indispensável na atual cobertura (como vinha sendo, durante 13 dias, com os enviados especiais ao Iraque) reside nessa estratégia: publicar edições cujas especificidades, para além do essencial dos fatos do dia, nem rádio nem TV ou internet -muito menos os demais jornais- sejam capazes de igualar.
Refiro-me a equilíbrio na exposição das forças em conflito, criatividade nos temas a serem privilegiados, mais profundidade nas análises militares, geopolíticas e diplomáticas, clareza nos textos e nos quadros, pautas inusitadas.
Somente com o poder da boa surpresa o jornalismo da Folha pode ajudar a produzir um contrapeso à ação permanente das crueldades da guerra contra o direito à informação.



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