São Paulo, domingo, 06 de outubro de 2002

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OMBUDSMAN

Goela abaixo

BERNARDO AJZENBERG

É recomendável que o assunto principal hoje, dia do primeiro turno, seja a democracia. Mas democracia não é só eleição.
Na quarta-feira, dia 2, enquanto as atenções do país se voltavam para os últimos momentos de campanha eleitoral, o "Diário Oficial da União" publicou uma medida provisória (MP) que regulamenta a participação de capital estrangeiro, até o limite de 30%, nas empresas jornalísticas e emissoras de rádio e TV do país.
O princípio dessa participação tinha sido aprovado no Congresso, em maio, numa emenda constitucional. Aguardava-se, desde então, que seu detalhamento fosse definido pelos parlamentares com base num projeto de lei.
Porém, a cinco dias das eleições -como ressaltou a Folha ao noticiar a medida quinta-feira-, o governo federal, de modo surpreendente, optou por baixar as regras via MP, um instrumento legal que faz com que a regulamentação entre em vigor, sem discussão, imediatamente.
Se quando da aprovação da emenda constitucional o debate foi escasso, desta vez ele simplesmente inexistiu, sendo o assunto, no entanto, essencial para os interesses de toda a sociedade.
O direito à informação, afinal, é um instrumento de exercício da cidadania. A forma como se disciplina a estruturação dos meios de comunicação, por isso, diz respeito a uma das formas de como se exerce a democracia. É assunto público, não privado.

Pressão
Disse o ministro das Comunicações, Juarez Quadros, que se recorreu a uma MP devido ao caráter de "relevância e urgência" da matéria. Relevância, sem dúvida. Mas urgência... para quem?
Quase todos os grupos de comunicação eram favoráveis a se aprovar o quanto antes a regulamentação, pois ela abre as portas, em tese, para que as dificuldades econômicas do setor -sem dúvida profundas, graves- sejam pelo menos diminuídas.
Segundo publicou a Folha na quinta, no entanto, dois grupos, Abril e Globo, "eram os que mais desejavam uma medida imediata do governo, via MP", por já estarem em negociação com investidores estrangeiros.
Aguardar que o assunto tramitasse como o previsto, no Congresso, levaria sua resolução para o ano que vem -e tais negociações poderiam ir por água abaixo. Daí a urgência...
Você, leitor, acha que se justifica o uso de uma MP, um instrumento excepcional, neste caso?
Ao adotar esse expediente, não estaria o governo atendendo, na verdade, à urgência de negócios privados de um ou dois grupos numa matéria complexa e delicada que diz respeito diretamente a interesses da sociedade?
Pode-se argumentar que o Congresso tem o poder de, ao fim e ao cabo, derrubar a MP. Ela, entretanto, já está em vigor, e ninguém em sã consciência imagina que, em nome da ampliação do debate público e democrático sobre os diversos pontos da regulamentação, a maioria dos parlamentares toparia agora "peitar" os grupos de mídia diretamente envolvidos na pressão pela sua antecipação.
Apesar de toda a imprensa se ter posicionado repetidamente, durante anos, em editoriais, contra o uso abusivo e antidemocrático de medidas provisórias pelo Executivo, desta vez não vi um único comentário a esse respeito.
"O Estado de S.Paulo" e o "Jornal do Brasil" publicaram sexta-feira editoriais de boas-vindas à regulamentação, mas passaram ao largo da forma como ela veio.
"Criticar a edição indiscriminada de MPs em questões alheias é um dever cívico, mas, quando se trata de assunto nosso", parece ter pensado a mídia, "tudo bem".


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