São Paulo, domingo, 07 de março de 2004

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OMBUDSMAN

Multidões

BERNARDO AJZENBERG

Reportagem publicada em Brasil na última terça-feira sobre manifestação realizada na véspera, na avenida Paulista, em protesto contra o fechamento dos bingos informava que, "segundo a Polícia Militar", 12 mil pessoas participaram do ato.
Algumas páginas adiante, em Cotidiano, um outro texto noticiava que o dia anterior havia registrado o maior índice de congestionamento deste ano em São Paulo e que um dos motivos para isso fora justamente aquela manifestação, à qual compareceram, "segundo a PM", pelo menos 6.000 pessoas.
Doze mil e 6.000 mil, ambos os dados, tão díspares, obtidos da mesma fonte (a PM)... Como fica o leitor? E o sentido do jornal como registro histórico confiável dos acontecimentos?
A avaliação de multidões não é um problema novo para o jornalismo, ao contrário. Mas o valor simbólico e político que ela adquire ultrapassa cada vez mais, e muito, os seus limites.
Não por acaso, repórteres costumam recorrer à PM, uma fonte supostamente neutra e mais experiente, para oferecer um contrapeso às estimativas, geralmente infladas, dos organizadores das manifestações (nesse caso, a Força Sindical falou em 30 mil presentes).
O "Manual da Redação" da Folha, por exemplo, tem um verbete para o tema, nessa direção.
Após afirmar que, em "evento importante", o jornal deve usar "método científico de medição do local, com assessoria do Datafolha", ele recomenda: "em evento menos importante, ouvir versão do organizador, do adversário (se houver), de autoridade e de observador isento; se possível, o jornalista deve contar ou estimar o número de participantes".
Até aí, tudo bem. Ocorre que, para além de eventuais distorções deliberadas, não há mágica nesses cálculos arriscados.
A própria PM depende da experiência de seus quadros em tal tipo de avaliação e, de modo empírico, faz apenas estimativas, baseadas na área ocupada e em pressupostos como, por exemplo, o de que, numa aglomeração muito "apertada", são cinco as pessoas por m2. Ainda assim, há divergências.
No caso em questão, a fonte usada na reportagem de Brasil, conforme apurei, foi o 11º Batalhão da PM, encarregado de fazer a segurança do protesto na avenida Paulista. Já a informação de Cotidiano proveio do Comando Geral da PM.
Ora, sendo às vezes inevitável que, no "calor dos acontecimentos", diferentes editorias consultem diferentes fontes, como deveria o jornal proceder para evitar a confusão no produto final?
Uma saída seria adotar uma regra estabelecendo que não basta escrever "segundo a PM", de modo genérico; cabe precisar de qual parte da corporação o dado surgiu.
Em segundo lugar, sempre que possível, expor as divergências (nessa terça, o "Estado de S.Paulo" aproximou-se de um modelo adequado: registrou que policiais-militares presentes ao ato tinham a mesma estimativa da Força Sindical -30 mil- mas que o Comando Geral contabilizou 6.000 pessoas).
A quantidade de manifestantes, seja qual for o tema mobilizador (político, econômico ou comportamental), tem valor imediato e simbolismo histórico relevantes demais para que a mídia a trate de modo nebuloso.
Se é impossível a obtenção de resultados inquestionáveis, que ao menos se exponham as fontes de informação com mais precisão e mais transparência.
Aquela vocação do jornal, de ser um registro histórico dos acontecimentos, só se reforçaria, e menos confusão haveria na cabeça do leitor.



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