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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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Alarme desligado

A Folha publicou na capa de Imóveis de domingo (31/8) uma reportagem intitulada "Anistia", cujo subtítulo dizia: "Apesar de a prefeitura estimar em 2 milhões o número de imóveis irregulares em São Paulo, minoria busca a regularização, cujo prazo termina em um mês".
Ao lado, um quadro instruía "como e por que regularizar". No texto, um representante de moradores reclamava que "faltou divulgação da prefeitura" e uma diretora ligada à administração alegava que "a maioria deixa tudo para a última hora".
Como se vê, nada demais, a não ser por um detalhe: a reportagem, versando sobre algo relacionado à gestão petista de São Paulo, traz no alto a assinatura de um jornalista (free-lancer) que, desde o dia 13/8, ocupa o posto de chefe de gabinete de um vereador do PSDB (oposição).
E aí, sim, começa o problema (o caso chegou, inclusive, à tribuna da Câmara Municipal).
A editora de Suplementos, Patrícia Trudes da Veiga, afirmou na sexta-feira ter sido informada da nomeação do jornalista, Sérgio Duran, "há uns10/15 dias", por ele próprio.
Na ocasião, explica, o free-lancer já havia escrito duas reportagens -essa sobre anistia e uma outra sobre inspeção predial, ainda não publicada.
Ela acrescenta que, na semana anterior a 31/8, Duran fizera ainda uma "atualização" de dados da reportagem sobre anistia.
Quanto à publicação da matéria, a jornalista não vê problema: "Além de isenta, é puramente de serviço: o passo-a-passo para regularizar o imóvel e as consequências de não regularizá-lo. Foi "esquentada" (já estava pronta há dez dias) com números que mostravam uma baixa adesão à lei de anistia."
Mesmo defendendo o que se fez, a editora de Suplementos deixa claro: "Obviamente, ele [Duran] não vai mais colaborar com o caderno de Imóveis".

Duplicidade
Em meados do século passado, era comum jornalistas terem também outras ocupações, inclusive políticas (em governos ou órgãos públicos).
A Folha, como boa parte da imprensa, levou anos para quebrar o hábito e implementar, em sua Redação, a não-aceitação da "dupla militância", da dupla colaboração (com o jornal e com um político ou autoridade).
Motivo principal: era preciso tornar o jornal independente de interesses externos, a fim de produzir um jornalismo crítico e imparcial e afirmar, perante o leitor, a sua credibilidade.
Se a prática ainda sobrevive em parte da mídia do país (como sobrevive a perniciosa existência de "matérias pagas" por governos em veículos de comunicação demonstrada em reportagem publicada terça-feira pelo jornal, no caso do Paraná), na Folha ela foi severamente combatida.
É alentador, neste caso, que a editora informe que o jornalista não mais colaborará com o caderno (ao menos enquanto ocupar o cargo político que ocupa). Concorre como atenuante, também, o adequado tratamento jornalístico do texto.
Mas nada disso apaga a inaceitável duplicidade impressa numa página do jornal -e agravada pelo fato de o tema da reportagem ser ligado à administração (petista) da capital.
Sérgio Duran, com quem também conversei -e cuja qualidade profissional e inteireza pessoal não estão em jogo aqui-, adota a mesma visão da editora, mas acrescenta um raciocínio que merece reflexão:
"Existia um risco, sim, que aceitamos correr por ser pequeno, tratando-se de uma reportagem inofensiva de serviço, com um texto equilibrado".
Com efeito, ao "atualizar" o texto com o mesmo repórter e ao publicar o material em vez de adiá-lo ou passar a outro jornalista a tarefa de refazê-lo, o jornal se expôs, ficou vulnerável à crítica de falta de isenção. Assumiu um "risco" que, mesmo menor, não deveria correr.
Essa inusitada flexibilidade ("atualizar" uma reportagem não é trabalho jornalístico?) e essa condescendência com o "risco" -em contraste com a rigidez que a Folha adota em casos assim há pelo menos 20 anos- são graves; passam a impressão de que algum alarme está desligado ou defeituoso.
Afinal, se tanto tempo durou -e ainda dura- a árdua implantação gradual de uma cultura de independência dentro da Redação, é razoável supor que um (indesejado) retrocesso nesse trajeto também não ocorreria de supetão, do dia para a noite, mas sim lentamente, sem alarde, calcado em eventos isolados -como este, que, por isso mesmo, deve servir para a Folha, no mínimo, como sinal de atenção.



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