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Jornalismo de uma fonte só
RENATA LO PRETE
Entre as cartas que recebi na
semana passada, houve uma
que me impressionou pela precisão com que diagnosticava
uma deficiência recorrente nas
reportagens da Folha: o hábito
de construí-las a partir de uma
única fonte de informação,
quase sempre oficial.
A crítica da leitora se concentrava em dois textos recentes
sobre a política do Ministério
da Educação para compra de livros didáticos.
O primeiro, de 21 de abril, informava que, para o próximo
ano letivo, o MEC "só vai comprar livros para repor os estragados e atender os novos alunos
da rede pública".
Serão 60 milhões de exemplares, contra 109 milhões adquiridos para este ano.
A partir de entrevista com a
presidente do Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação, o jornal dizia que a medida
"tem o objetivo de racionalizar o uso do dinheiro público, aumentar a duração dos
livros distribuídos às
escolas e incentivar os
estudantes a preservar
o material".
Com a mudança, cada volume passaria a
ser utilizado por três
anos, contra os dois
atuais.
"Em países como a
França", comparava a
Folha, "os livros didáticos chegam a durar
cinco anos".
O jornal relatava
ainda que uma pesquisa constatou "falta de
cuidado com os livros,
que, por vezes, não são
guardados em lugares
adequados e são mal
conservados". "É preciso mudar essa cultura", concluía a presidente do FNDE.
O segundo texto, publicado três dias depois
do primeiro, também
registrava uma só visão, desta vez a do ministro Paulo Renato
Souza.
"É preciso conscientizar os estudantes e os
professores da necessidade de preservar. É um avanço
no sentido da formação do cidadão", dizia ele ao lançar
campanha nesse sentido.
O protesto da leitora:
"O enfoque das reportagens
empulha o leitor, que não acha
a Folha na rua, mas paga por
ela."
"O discurso oficial, por ser
oferecido como único, não dá
chance para que cada um forme
sua opinião."
Professora do curso de editoração da Universidade de São
Paulo, a leitora apontava uma
série de aspectos não abordados
pelo jornal.
Vale a pena relacioná-los.
"Esse assunto não tem um lado só. Tem muitos. O que pensam sobre ele professores, pais,
editores, crianças que recebem
os livros?"
"A repórter diz que na França
os livros duram cinco anos,
dando a entender que isso
acontece por uma diferença de
nível cultural."
"Faltou esclarecer se lá os livros são comprados pelos pais
ou pelo governo, só para os pobres ou para todos."
"Faltou ainda explicar que na
França os livros têm formato
mais manejável pelas crianças,
e são encadernados com costura e capa dura."
"Os daqui têm papel de baixa
qualidade e encadernação pouco resistente ao manuseio."
"Em nosso país, as crianças
mais pobres vivem em moradias muito precárias, em que
não há bons lugares para guardar os livros."
"Nas zonas rurais, as crianças
fazem grandes caminhadas para chegar à escola. Nem todas
dispõem de bolsas impermeáveis para transportar seu material."
"Essa campanha está com cara de que vai perseguir as crianças mais pobres como desleixadas e pessoas sem cultura, que
não respeitam os livros."
Não se trata de decidir aqui
quem está certo, o governo ou a
professora.
É bem possível que a questão,
como tantas, não comporte respostas simples.
Exatamente por isso o jornal
tem a obrigação de apresentá-la sob diferentes ângulos.
"A leitora tem toda a razão de
se sentir decepcionada", afirma
o editor de Cotidiano/São Paulo, Vaguinaldo Marinheiro.
Ele atribui episódios como esse, "em parte, às pressões do fechamento diário", mas reconhece que, "em princípio, nenhuma reportagem deveria ser
feita dessa forma".
É mais do que isso. Não é reportagem algo que é feito dessa
forma.
A síndrome da fonte única
não está presente apenas nos
dois textos analisados pela leitora. Pode ser constatada, página sim, página não, por qualquer um que acompanhe o jornal com regularidade.
De imediato, a carta me fez
lembrar das conversas telefônicas que tive, entre março e abril,
com um professor da rede pública do Paraná.
Ele me procurou para reclamar de levantamento que a Folha havia publicado sobre a situação dos salários do funcionalismo nos Estados.
O leitor, que àquela altura
ainda aguardava o pagamento
do adicional de 30% relativo às
férias de 98, ficou surpreso ao
encontrar o carimbo "em dia"
junto ao nome do Paraná.
O critério adotado pelo jornal
-considerar "em atraso" os Estados que deviam meses de salários- pode ser questionado,
mas tem lá sua lógica.
Ao mesmo tempo, é fato que
os vencimentos do leitor não estavam "em dia".
Mais do que estabelecer se
houve ou não erro factual, o
problema residia no teor da resposta da Redação, que mais parecia um press release do governo estadual.
"O Paraná está em
dia com o funcionalismo", decretava o
relatório que, para
fúria do professor,
apresentei em nossa
segunda conversa.
"Somente eles" (os
professores), dizia o
texto, estavam recebendo o terço de férias com atraso, porque "quase todos tiram férias em janeiro
e fevereiro, o que onera bastante a folha de
pagamentos".
É enorme a distância entre essa atitude
e o pluralismo apregoado no projeto editorial da Folha.
Na vida real, o jornal ainda falha "na
auscultação meramente formal do "outro lado' da notícia".
De acordo com o
documento, essa fase
já deveria ter sido superada pela "busca
de uma compreensão
mais autêntica das
várias facetas implicadas no episódio
jornalístico".
O caso do professor
terminou com minha
sugestão de que a Folha publicasse carta dele, o que
foi feito no domingo passado.
Quanto à história dos livros
didáticos, eis a conclusão da leitora:
"Para ler o que li, era melhor
pegar diretamente um boletim
do governo. Do jornal que compro, espero uma reportagem de
fato."
De hoje a quarta-feira, participarei da reunião anual da
ONO (Organization of News
Ombudsmen), que este ano
acontece em Chicago.
Por essa razão, o atendimento
ao leitor estará suspenso esta
semana.
Durante minha ausência, os
casos urgentes serão encaminhados por Rosângela, secretária do Departamento de Ombudsman, à direção do jornal.
Todas as mensagens serão respondidas por mim a partir do
dia 17.
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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato
de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade
por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor
-recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário
dos meios de comunicação.
Cartas: al. Barão de Limeira 425, 8º andar, São Paulo, SP CEP 01202-900, a/c Renata Lo Prete/ombudsman,
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Contatos telefônicos:
ligue (0800) 15-9000; se deixar recado na secretária eletrônica, informe telefone de contato no horário de atendimento, entre 14h e 18h, de segunda a sexta-feira. |
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