São Paulo, domingo, 9 de maio de 1999
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Jornalismo de uma fonte só

RENATA LO PRETE

Entre as cartas que recebi na semana passada, houve uma que me impressionou pela precisão com que diagnosticava uma deficiência recorrente nas reportagens da Folha: o hábito de construí-las a partir de uma única fonte de informação, quase sempre oficial.
A crítica da leitora se concentrava em dois textos recentes sobre a política do Ministério da Educação para compra de livros didáticos.
O primeiro, de 21 de abril, informava que, para o próximo ano letivo, o MEC "só vai comprar livros para repor os estragados e atender os novos alunos da rede pública".
Serão 60 milhões de exemplares, contra 109 milhões adquiridos para este ano.
A partir de entrevista com a presidente do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o jornal dizia que a medida "tem o objetivo de racionalizar o uso do dinheiro público, aumentar a duração dos livros distribuídos às escolas e incentivar os estudantes a preservar o material".
Com a mudança, cada volume passaria a ser utilizado por três anos, contra os dois atuais.
"Em países como a França", comparava a
Folha, "os livros didáticos chegam a durar cinco anos".
O jornal relatava ainda que uma pesquisa constatou "falta de cuidado com os livros, que, por vezes, não são guardados em lugares adequados e são mal conservados". "É preciso mudar essa cultura", concluía a presidente do FNDE.
O segundo texto, publicado três dias depois do primeiro, também registrava uma só visão, desta vez a do ministro Paulo Renato Souza.
"É preciso conscientizar os estudantes e os professores da necessidade de preservar. É um avanço no sentido da formação do cidadão", dizia ele ao lançar campanha nesse sentido.
O protesto da leitora:
"O enfoque das reportagens empulha o leitor, que não acha a
Folha na rua, mas paga por ela."
"O discurso oficial, por ser oferecido como único, não dá chance para que cada um forme sua opinião."
Professora do curso de editoração da Universidade de São Paulo, a leitora apontava uma série de aspectos não abordados pelo jornal.
Vale a pena relacioná-los.
"Esse assunto não tem um lado só. Tem muitos. O que pensam sobre ele professores, pais, editores, crianças que recebem os livros?"
"A repórter diz que na França os livros duram cinco anos, dando a entender que isso acontece por uma diferença de nível cultural."
"Faltou esclarecer se lá os livros são comprados pelos pais ou pelo governo, só para os pobres ou para todos."
"Faltou ainda explicar que na França os livros têm formato mais manejável pelas crianças, e são encadernados com costura e capa dura."
"Os daqui têm papel de baixa qualidade e encadernação pouco resistente ao manuseio."
"Em nosso país, as crianças mais pobres vivem em moradias muito precárias, em que não há bons lugares para guardar os livros."
"Nas zonas rurais, as crianças fazem grandes caminhadas para chegar à escola. Nem todas dispõem de bolsas impermeáveis para transportar seu material."
"Essa campanha está com cara de que vai perseguir as crianças mais pobres como desleixadas e pessoas sem cultura, que não respeitam os livros."
Não se trata de decidir aqui quem está certo, o governo ou a professora.
É bem possível que a questão, como tantas, não comporte respostas simples.
Exatamente por isso o jornal tem a obrigação de apresentá-la sob diferentes ângulos.
"A leitora tem toda a razão de se sentir decepcionada", afirma o editor de
Cotidiano/São Paulo, Vaguinaldo Marinheiro.
Ele atribui episódios como esse, "em parte, às pressões do fechamento diário", mas reconhece que, "em princípio, nenhuma reportagem deveria ser feita dessa forma".
É mais do que isso. Não é reportagem algo que é feito dessa forma.
A síndrome da fonte única não está presente apenas nos dois textos analisados pela leitora. Pode ser constatada, página sim, página não, por qualquer um que acompanhe o jornal com regularidade.
De imediato, a carta me fez lembrar das conversas telefônicas que tive, entre março e abril, com um professor da rede pública do Paraná.
Ele me procurou para reclamar de levantamento que a
Folha havia publicado sobre a situação dos salários do funcionalismo nos Estados.
O leitor, que àquela altura ainda aguardava o pagamento do adicional de 30% relativo às férias de 98, ficou surpreso ao encontrar o carimbo "em dia" junto ao nome do Paraná.
O critério adotado pelo jornal -considerar "em atraso" os Estados que deviam meses de salários- pode ser questionado, mas tem lá sua lógica.
Ao mesmo tempo, é fato que os vencimentos do leitor não estavam "em dia".
Mais do que estabelecer se houve ou não erro factual, o problema residia no teor da resposta da Redação, que mais parecia um press release do governo estadual.
"O Paraná está em dia com o funcionalismo", decretava o relatório que, para fúria do professor, apresentei em nossa segunda conversa.
"Somente eles" (os professores), dizia o texto, estavam recebendo o terço de férias com atraso, porque "quase todos tiram férias em janeiro e fevereiro, o que onera bastante a folha de pagamentos".
É enorme a distância entre essa atitude e o pluralismo apregoado no projeto editorial da
Folha.
Na vida real, o jornal ainda falha "na auscultação meramente formal do "outro lado' da notícia".
De acordo com o documento, essa fase já deveria ter sido superada pela "busca de uma compreensão mais autêntica das várias facetas implicadas no episódio jornalístico".
O caso do professor terminou com minha sugestão de que a
Folha publicasse carta dele, o que foi feito no domingo passado.
Quanto à história dos livros didáticos, eis a conclusão da leitora:
"Para ler o que li, era melhor pegar diretamente um boletim do governo. Do jornal que compro, espero uma reportagem de fato."

De hoje a quarta-feira, participarei da reunião anual da ONO (Organization of News Ombudsmen), que este ano acontece em Chicago.
Por essa razão, o atendimento ao leitor estará suspenso esta semana.
Durante minha ausência, os casos urgentes serão encaminhados por Rosângela, secretária do Departamento de Ombudsman, à direção do jornal. Todas as mensagens serão respondidas por mim a partir do dia 17.




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Renata Lo Prete é a ombudsman da Folha. O ombudsman tem mandato de um ano, renovável por mais dois. Ele não pode ser demitido durante o exercício do cargo e tem estabilidade por seis meses após o exercício da função. Suas atribuições são criticar o jornal sob a perspectiva do leitor -recebendo e verificando as reclamações que ele encaminha à Redação- e comentar, aos domingos, o noticiário dos meios de comunicação.
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