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São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2003

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OMBUDSMAN

A vida como ela (não) é

BERNARDO AJZENBERG

A Folha costuma se sair bem nas reportagens relacionadas ao Poder -seja o Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. Apesar de algumas oscilações, foi o que ocorreu, nessa semana, com a cobertura da ação da Polícia Federal e promotores (Operação Anaconda) e a dos atentados contra a Polícia Militar em SP.
Dois outros casos que eclodiram nos últimos dias revelaram, porém, falta de discernimento e insensibilidade do jornal quando o tema afeta, ainda que de modo indireto, a vida concreta, o bolso, o dia-a-dia do seu leitor.
Há meses, filas enormes de idosos se formam para pegar formulários e encaminhar pedidos de revisão de valores de pensões ou aposentadorias. O prazo para isso vence no próximo dia 20.
A Folha não tem dado atenção a essa "mobilização". Ela só surgiu (um pouco) em suas páginas a partir de uma outra questão envolvendo o INSS, na semana passada.
Com efeito, na quinta-feira, o jornal editou reportagem informando que o governo suspendera, desde segunda, o pagamento de benefícios para quem tem mais de 90 anos de idade ou 30 anos de aposentadoria, alegando necessidade de recadastramento devido a fraudes. Isso envolve 105 mil pessoas.
Dois pontos, aqui, a comentar.
A suspensão começou na segunda, e o jornal só a divulgou na quinta (o jornal "O Dia", do Rio, por exemplo, deu a notícia antes, na quarta-feira).
Além disso, o registro da Folha era apenas factual. A única "fonte" citada foi oficial: a assessoria da Previdência. Nenhum depoimento de aposentado, nenhum relato de caso real.
Registre-se, entre parênteses, que apareceu, sim, um elemento "acalorado" na reportagem. Foi ao pé do texto, sob a forma de um comentário crítico ao INSS, que "deveria ter dado ampla publicidade ao fato e prazo maior para o recadastramento antes de suspender os pagamentos".
Mesmo esse parágrafo opinativo, porém, constitui algo esdrúxulo, como registrei na crítica interna daquele dia: "Sem entrar no seu mérito, ele (o comentário) me parece, em qualquer caso, estar num local inapropriado (...) O precedente, acredito, é perigoso em relação à separação que deve haver, na Folha, entre notícia e opinião".
Idêntico tom frio e protocolar caracterizou a reportagem do dia seguinte (sexta), sobre o recuo do governo, que, ante a reação, suspendeu o bloqueio dos benefícios. Diferentemente do que fez, por exemplo, o "Globo", o jornal foi incapaz de oferecer ao leitor uma imagem, um depoimento expressivo, um serviço útil e esquematizado de orientação. Nada propiciou além da informação oficial.
Só ontem, depois que o ministro Ricardo Berzoini (Previdência) pediu desculpas aos nonagenários, o jornal dedicou a estes espaço mais generoso e conteúdo diferenciado.
A resistência da Folha a entrelaçar um problema amplo com situações particulares sintomáticas se evidenciou, também, no caso do casal de namorados Liana Friedenbach, 16, e Felipe Silva Caffé, 19, alunos de um dos colégios mais tradicionais da capital paulista, desaparecidos desde sábado entre Juquitiba e Embu-Guaçu, na Grande São Paulo, onde foram acampar.
O episódio saiu no "Diário de S.Paulo" na quarta. Ao recuperá-lo, na quinta, a Folha produziu um texto robótico, descritivo, com fotos de arquivo do rosto da adolescente.
Nesse mesmo dia, o "Estado de S.Paulo" trazia uma foto de um helicóptero no meio do mato, com policiais e o pai de Liana. O "Diário de S.Paulo" produzia entrevistas e fotos ("quentes", de reportagem) das duas famílias.
Na sexta, idem: no "Estado", declarações e foto do pai, imagem do quiosque sob o qual a barraca dos jovens teria sido armada, depoimentos de colegas sobre o casal (veja no quadro); na Folha, fotos de arquivo e um texto relatorial, sem nenhuma citação entre aspas.
Não é preciso longa experiência jornalística para saber que, mesmo derivando de uma dimensão pessoal, tais temas -aposentados e sumiço de jovens de classe média- tocam fundo no leitor e, nessa medida, ganham relevância noticiosa.Tanto quanto são relevantes, embora numa dimensão mais institucional, a Operação Anaconda e os atentados à PM.
A Folha, porém, pareceu colocar-se, aqui, um falso dilema.
Privilegia a interlocução com o Poder e seus assuntos, valorizando o leitor-cidadão, ao mesmo tempo em que se afasta desse mesmo leitor como indivíduo, com iras e dramas particulares.
Será impossível ao jornalismo unir as duas dimensões?



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